Aos amores (2 de 2)

E num dia bom, claro e fresco (acordar suave ao fim de seis horas de lençol lavado) e mesmo assim só às vezes: os outros humanos quase todos. Entre o berço e o caixão, se os encontrares, já não podes dizer que vais daqui...

Foto
Unsplash

A Namorada: e toca toca a reunir! Percebemos para que servem os instrumentos e há música e deixamos de ter Invernos escuros. Filosofem os que sabem lá do assunto que nós percebemos que o sublime é o que profanos vêem como minúscula imperfeição. Bába, suór, mãos, carnes, a minhoca a infiltrar-se na maçã... desistimos de ser moribundos.

O Amigo: a “menschkeit” reduzida à sua essência mais grossa, que é como quem diz: a canalha aos pulos. O cárcere da testosterona vira parque-infantil e nem as companheiras mais emancipadas são capazes de se chatear connosco. Não nos preocupamos em como “cuidar delas”, porque lá por sermos miúdos por dez minutos isso não quer dizer que nos esqueçamos que no real lidamos com mulheres a sério, e não com os fantasmas fantasiados das nossas adolescências.

O Grupo: e agora ou vai ou racha! Velhos de mais para terceiras hipóteses, tornamo-nos donos do nosso produzir: purgamos, purgamos e sobram sempre os mesmos dez. Belos, luminosos, uma espécie de família; implacáveis na queda, duríssimos na entrada. Tão da casa que não nos conseguimos ofender, desde que nos achámos, quem tinha ouvidos ouviu, quem tinha pernas dançou! São vinte braços, para os abraços, parta o vidro em caso de necessidade!

A Professora (2ª): como Hefesto, pimba pimba na cabeça até sacar à martelada sabedoria bela, nova e já de armadura completa. E eu que falava de estradas e só conhecia atalhos, e ela a mostrar-me caminhos entre chaminés e orvalhos (pela manhã e sem agasalhos), um dia volto já sozinho; um dia fraco, outro forte.

Os Outros Meus: cunhados, afilhados, compadres, sogros e sograstas, tios, primos, maridos e namorados adoptados, os putos deles, uma ou outra tia-avó, colegas daqui dali e dacolá, conhecidos, vizinhos, as educadoras da garota, dois compositores, um poeta, três pintores, a padeira e o velhote da fruta, a maior parte das mulheres-a-dias, uma porteira, um terço dos barmen e os todos barbeiros e taxistas silenciosos, de vez em quando um chunga que se apanha na rua.

O Bicho: cão, gato, rato, lagarto, cavalo, aranhiço, periquito, não interessa. Criatura com nome e personalidade e humores radicalmente diferentes dos nossos, alma de certeza se tal coisa houver, uma espécie de amigo noutra espécie.

A Mulher: rua torta e longa, que não dá à costa por mais exausta que esteja, o desencanto que vive encantado, lado de dentro do vulcão, é por virtude que nela vive o meu vício. Primavera, verão, primavera outra vez, orquídea rara, faca de dois gumes, a convencer-me da doce mentira do amor.

A Miúda: a alminha, a garota, a cachopa, a menina, a catraia, a pequena monstra, a amostra, a mini-fera, a sapeca... minha única responsabilidade entre o chão e o sol.

E num dia bom, claro e fresco (acordar suave ao fim de seis horas de lençol lavado) e mesmo assim só às vezes: os outros humanos quase todos. Entre o berço e o caixão, se os encontrares, já não podes dizer que vais daqui...

Sugerir correcção
Comentar