É tão fácil obter um registo criminal…

Certo dia, um ex-secretário de Estado de um certo país pega no telefone às oito da manhã, liga para o presidente de um certo instituto público e pede-lhe uma certidão do registo criminal para a mulher poder viajar para o estrangeiro.

Duas horas depois, esse certo ex-secretário de Estado de um certo país tem à sua porta um motorista desse certo instituto com a certidão prontinha a ser utilizada. Não, a história não se passou numa qualquer república das bananas nem em nenhum país com um regime autocrático. Aconteceu em Portugal tendo como protagonistas Miguel Relvas e António Figueiredo, ex-presidente do Instituto dos Registos e Notariado, arguido por suspeitas de corrupção no caso dos vistos Gold. Na aparência, o caso pode parecer uma trivialidade, uma mera anedota sobre a subserviência dos gestores públicos aos poderosos da política. Não é. O que este caso nos mostra é a banalidade com que os privilégios de uma casta se exercem. Ou a displicência com que uma certa classe política e os seus apêndices olham o Estado, como se fosse numa coutada dos seus próprios interesses.

Nem sempre os grandes casos que dão origem a grandes processos judiciais sobre corrupção são os que melhor nos esclarecem sobre a natureza do poder ancorado numa rede de privilégios. Até porque, por muito que um certo justicialismo esteja em voga por aí, Portugal não é um país no qual a corrupção seja endémica – pelo menos na extensão que se conhece em outros países do Sul da Europa – e é, acredito, um país no qual a esmagadora dos nossos representantes é proba e decente. Mas, a revelação pelo PÚBLICO de uma série de escutas do processo vistos gold pode servir de base à convicção de que o nepotismo é uma doença endémica do sistema. Essas escutas, que envolvem Luis Goes Pinheiro, chefe de gabinete do secretário de Estado do Conselho de Ministros, Marques Mendes, Miguel Relvas, Agostinho Branquinho e (numa situação muito mais compreensível e natural) a ministra Francisca Van Dunen mostram de forma clara que o exercício da cunha, a troca de favores e a permeabilidade do interesse do Estado aos interesses dos privados se exercem com toda a naturalidade do mundo. Como se em causa estivesse uma rotina no seio de um Estado opaco, burocrático e centralista.

Os telefonemas com pedidos pessoais que peixes graúdos da vida pública ao ex-presidente do Instituto dos Registos e Notariado são a prova de que há uma cultura de nepotismo que não muda porque se alimenta da própria noção de que o Estado, à boa maneira marxista, é um instrumento ao serviço de uma classe. Se os conjugarmos com o pedido, à socapa, de três dúzias de deputados ao Tribunal Constitucional para que averiguasse as alterações às subvenções vitalícias de um núcleo antigo do pessoal político, confirmamos que em Portugal existe uma corte que só ganha em manter a inércia do sistema para poder conservar o status quo clientelar que os beneficia e os direitos adquiridos que mais ninguém tem. É essa inércia que a auto-protege e auto-perpetua. Quem esperou que esse imponente monumento ao nepotismo erigido sob a sucata do processo Face Oculta ficasse abalado com as denúncias públicas e a exigência do Tribunal de Aveiro, ficou desenganado com a catadupa de casos que se seguiram.

Há por aí quem exija que, em tempos como estes, todos os titulares de cargos políticos ou de altos cargos públicos deveriam fazer prova de santidade. Nos tempos de crise, quando tantas vezes se fica com a sensação de que tudo está em risco de naufrágio, é legítimo reforçar a exigência sobre a dimensão moral dos que nos pedem suor e lágrimas. Mas, não é disso que se trata. Esse apelo moralista que reclama a beatitude e pureza de princípios para o exercício do poder foi e continua a ser a base sobre a qual se erigiram as mais odiosas ditaduras. Não se pode pedir a dois velhos amigos que deixem de o ser quando um vai para secretário de Estado ou para ministro. Não se pode meter o exercício da política num embrulho de castidade, que torna a oferta ou o recebimento de uma caixa de robalos ou de uma garrafa de Porto Vintage uma prova de venalidade e crime. E, no que aos direitos dos políticos diz respeito, temos também de achar por bem que defendam a dignidade das suas funções e que as tentem valorizar – até porque o populismo continua a achar que um deputado ou um ministro já ganha de mais. Mas ao assumirmos esta condescendência, temos também de a circunscrever num perímetro razoável. Infelizmente, não é isso que acontece.

Desde deputados que fazem do parlamento pontos de passagem para carreiras profissionais bem mais lucrativas ou que usam as suas bancadas para criar redes de influência até ex-ministros que se transformam em agentes infiltrados dos interesses particulares na máquina do Estado, há de tudo um pouco. Conhecer a pessoa certa no lugar certo continua a ser meio caminho para se evitar a via sacra dos concursos transparentes e isentos, as alíneas de contratos incómodos ou o pagamento de impostos inconvenientes. Ao longo dos últimos anos, fomos sabendo como esta classe de pivots na gestão de interesses e negócios entre a esfera pública e privada se consolidou nos interstícios da crise. Nem sempre aparecem figuras de filme como Jacinto Leite Capelo Rego a depositar centenas de pequenos cheques nas contas de um partido (o CDS, no caso) como suposto pagamento desses favores. Mas lá vamos sabendo aos poucos de histórias de pessoas que, como Dias Loureiro, Armando Vara ou, noutro plano de responsabilidade, Lalanda de Castro, Miguel Relvas, Marques Mendes ou essa figura grada do lobismo pátrio chamada Agostinho Branquinho, continuam a aplicar o seu valioso “capital social” para disporem dos favores do Estado de uma maneira que um qualquer cidadão não consegue sequer imaginar.

O que irrita nas histórias reveladas pelo PÚBLICO, onde se sabe de pedidos para obtenção de nacionalidade portuguesa para amigos ou clientes, onde se conhecem solicitações de ingerência em concursos públicos para recrutamento de quadros dirigentes para o Estado, onde se pede a um presidente de um instituto para interferir na emissão de uma caderneta predial é essa ideia de que há uma casta que usa o poder para criar no país uma linha de separação. O que destrói o clima de confiança e mina o sentido de comunidade é essa ideia de que o princípio da igualdade é uma história da Carochinha. O que acentua o divórcio entre os cidadãos da política é a sensação de que há uma rede de privilégios que nem a Justiça, nem a imprensa, nem o criticismo dos cidadãos conseguem romper. Instala-se assim a sensação difusa de que a democracia e o Estado são lugares distantes e inacessíveis, onde só os membros dos partidos e os lobistas que os emulam podem chegar. Não é por acaso que a abstenção grassa, nem é por acidente que o Bloco de Esquerda está a crescer. Para todos os efeitos, há quem acredite que isto não muda mesmo. E há quem note que, apesar do disparate das suas crenças políticas, é legítimo olhar para os militantes do Bloco ou do PCP e acreditar que eles e só eles estão do lado da barricada dos que não têm direito a cunhas, a encomendas ou a qualquer outro tipo de favores. 

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