E se os pais pedirem ao hospital para levar a placenta para casa?

Dúvida de profissional de saúde levou a parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida que recomenda legislação que concretize os casos em que a placenta deve ser incinerada e quando pode ser dada ao casal.

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A placenta é o "único órgão do corpo humano que surge na mulher durante a gestação" João Guilherme/arquivo

Regra geral, o assunto não levanta muitas dúvidas. Após o parto, os hospitais tratam a placenta como um resíduo e, por isso, é incinerada. No entanto, um profissional de saúde pediu esclarecimentos ao Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV), por estarem a surgir cada vez mais casais que querem ficar com este órgão, o que gerou “controvérsia no seio da equipa médica e da administração hospitalar”. O tema deu origem a um parecer do CNECV, em que se recomenda que Portugal avance com legislação que dê resposta a estes pedidos e que preveja quando deve ou não ser entregue, defendendo-se que, “em termos simbólicos, uma placenta pode representar o resíduo de uma história de vida”.

No parecer, o CNECV começa por lembrar que a placenta é o “único órgão do corpo humano que surge na mulher durante a gestação, constituindo um estreito elo de ligação entre a mãe e o ser por ela gerado ao longo de nove meses, reveste-se de uma dimensão simbólica que tem alimentado as mais diversas crenças e práticas culturais”. São dados exemplos de vários países e culturas em que há rituais associados à placenta ou mesmo a preparação da mesma para consumo humano. Nas recomendações finais, os especialistas entendem que não há barreiras éticas nem no que diz respeito à incineração nem no que diz respeito à entrega e insiste que é importante ter legislação com respostas concretas – o que até agora não existe.

O documento sintetiza que “a placenta é tida em certas culturas como algo que transcende a sua essência biológica e que, de um modo ou de outro, influencia a vida do nascituro e dos seus pais, justificando rituais próprios”. Depois, recorda que há casos de interesse científico, com o aparecimento de “métodos de processamento e preservação de células derivadas do cordão e da placenta”.

“Neste contexto, interroga-se se a placenta possui características especiais relativamente a outros órgãos e tecidos passíveis de lhe atribuir uma singularidade que justifique um tratamento ético e jurídico autónomo”, diz o conselho de ética, que dá mesmo o exemplo de uma empresa no Reino Unido que, desde 2009, prestou serviços a mais de 4000 mães a quem vendeu placentas sob a forma de cápsulas, apesar de “envolvida em alguns casos judiciais”.

No que diz respeito à legislação, o parecer diz que a placenta está enquadrada num decreto-lei que define o regime geral da gestão de resíduos e dos resíduos hospitalares em concreto, por se considerar que estes últimos podem contribuir para uma “eventual propagação de doenças transmissíveis” e “focos de contaminação que constituam risco para a saúde pública”. A placenta não é referida nesse decreto mas sim num despacho que divide os resíduos hospitalares em quatro grupos. A placenta entra num grupo de incineração obrigatória que prevê este desfecho para “peças anatómicas identificáveis, fetos e placentas, até publicação de legislação específica”.

O problema é que a legislação específica nunca chegou a ver a luz do dia. Além disso, segundo o parecer do CNECV, a própria legislação comunitária só considera a placenta como resíduo perigoso “caso se verifiquem requisitos específicos com vista à prevenção de infecções” e Portugal, ao transpor a legislação, “veio a qualificar a placenta como um resíduo hospitalar específico, perigoso e obrigatoriamente incinerado”.

Para o conselho de ética, as actuais regras acabam por não se justificar quando, por exemplo, nos partos em casa os casais acabam por fazer o que querem com a placenta. “Pela sua carga simbólica não podemos igualmente descurar que algumas religiões e credos têm a placenta como parte integrante da sua doutrina, devendo sempre que possível salvaguardar-se o direito à liberdade religiosa, igualmente protegido constitucionalmente”, defende-se.

O parecer lembra também que a própria Organização Mundial de Saúde determina que “as instituições de saúde devem preservar o direito das mulheres a parir em instituições, de decidir sobre a sua roupa e o bebé, sobre a alimentação, o destino da placenta, e outras práticas culturalmente significantes”. “Notemos que o parto, tenha ou não como resultado o nascimento com vida de uma criança, mais do que uma etapa é um momento fortemente inscrito na existência humana. Em termos simbólicos, uma placenta pode representar o resíduo de uma história de vida. Teremos decerto que considerar também a especial vulnerabilidade das pessoas envolvidas, as emoções, a materialização dos sentidos de vida e de viver”, acrescenta-se.

Para o CNECV, “é previsível, tendo em conta os movimentos, mesmo mediáticos, que dão força crescente a esta pretensão, que as solicitações sobre o destino a dar à placenta sejam cada vez mais frequentes”, pelo que reitera ser “aconselhável definir formas de atender a estes pedidos, seja através de um procedimento ou de uma política institucional que seja do conhecimento público e que inclua os elementos necessários, os requisitos de manuseamento, preservação e entrega da forma mais segura, assim como as razões de recusa de entrega da placenta ou da sua destruição”.

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