Um galeão afundado, com ou sem tesouro, também é política

O Presidente da Colômbia anunciou, no início de Dezembro, a descoberta do mítico galeão espanhol San José, afundado no séc. XVIII no Mar das Caraíbas. O caso está a motivar um debate entre os dois países. A quem pertence?

Fotogaleria
Galeão San José em Wager's Action, de 1708 Samuel Scott
Fotogaleria
Imagem do espólio do galeão San José Presidência da Colômbia
Fotogaleria
Fragata Las Mercedes DR
Fotogaleria
Moeda de dez cruzados encontrada junto aos destroços de navio português na Namíbia DR

Há várias questões que podem ser levantadas após o anúncio da descoberta do sítio, no fundo do Mar das Caraíbas, onde se encontrarão os destroços do galeão espanhol San José, afundado pelos ingleses em 1708, ao largo da costa colombiana.

Estaremos perante um tesouro recheado de moedas de ouro e, com o tempo, transformado em miragem e mito, nomeadamente desde que o San José entrou nos sonhos das personagens dos romances de Gabriel Garcia Márquez, ou apenas um sítio arqueológico a merecer atenção científica? Estaremos perante um “depósito” que vale vários milhões de dólares (ou euros, ou pesos, ou “reais”) ou um bem que é património da humanidade? E, antes de chegar a essa pertença colectiva, a quem pertence o San José: à Colômbia, a Espanha ou até, pelo menos em parte, à empresa norte-americana Sea Search Armada (SSA), que reivindica ter encontrado o “túmulo” da embarcação já no início dos anos 1980?

A questão da propriedade foi a primeira a aflorar depois de, no início de Dezembro, o Presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, ter anunciado a descoberta, sublinhando desde o início que se trata de “um património dos colombianos para os colombianos” e refugiando-se na sua classificação como “segredo de Estado" para não avançar detalhes nem responder às perguntas mais incómodas dos jornalistas, nomeadamente as que diziam respeito à partilha do espólio que vier a ser resgatado com a empresa privada associada ao projecto, cujo nome não foi revelado.

As primeiras reacções, ainda que cautelosas e seguindo a ética diplomática, partiram de Espanha, onde o ministro das Relações Exteriores, José Manuel García-Margallo, invocando a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS, na sigla inglesa), começou por dizer, citado pela BBC, que “o San José é um barco de Estado, de guerra, e não um barco privado”, verificando-se assim a “titularidade do Estado cuja bandeira estava no pavilhão” – Espanha, portanto.

As boas relações entre Madrid e Bogotá mantiveram a “disputa” num clima civilizado, bem expresso em declarações posteriores de responsáveis políticos de ambos os lados: “Respeitamos profundamente o governo espanhol. Vamos esperar que chegue o pedido formal de que fala o ministro [García-Margallo], que estudaremos com a chancelaria da Presidência da República”, respondeu a ministra da Cultura colombiana, Mariana Garcés. Já o seu homólogo em Espanha, o secretário de Estado da Cultura José Maria Lassalle, assinalava, segundo o jornal El País, que “o debate sobre a propriedade é secundário”, e que o San José “é património da humanidade”.

A anunciada intenção do Presidente colombiano de criar um museu para acolher o espólio a recuperar do fundo do mar foi também bem recebida em Espanha. “Estamos à espera que o Governo nos comunique o projecto de investigação anunciado pelo Presidente Santos”, acrescentou Lassalle, disponibilizando a colaboração do seu país, mas “sempre seguindo as práticas da UNESCO [Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura]”.

Colômbia fora da Convenção da Unesco
Mas aqui surge outra questão: a UNESCO aprovou em 2001 a Convenção sobre a Protecção do Património Cultural Subaquático, que defende que as embarcações naufragadas que tenham navegado ao serviço de um Estado mantêm o estatuto de embaixadas flutuantes, ou seja, são território desse Estado. A convenção foi já aprovada por mais de meia centena de países, incluindo Espanha e Portugal, mas a Colômbia ficou de fora. Em alternativa, este país aprovou em 2013 uma lei do património submerso que admite o recurso pelo Estado a empresas interessadas na procura e investigação com financiamento próprio, que depois será pago com parte do espólio encontrado, segundo o critério da “repetição”: só poderão ser alienados os bens de que existam exemplares duplicados.

O teor desta legislação e o facto de o Presidente Juan Manuel Santos não ter identificado a empresa que colaborou com o seu país na localização dos destroços do San José têm motivado dúvidas e críticas por parte da comunidade arqueológica espanhola. Numa declaração ao jornal ABC, Javier Noriega (Nerea Arqueologia) disse que “não se pode falar de arqueologia sem identificar a origem [de um achado] e convertê-lo no centro de uma investigação”.

Ao mesmo diário espanhol, o arqueólogo português Alexandre Monteiro levantou também dúvidas sobre os contornos da operação do San José e classificou mesmo como “um escândalo diplomático, humano e civilizacional” que a ministra da Cultura colombiana tenha autorizado buscas num tesouro que é também “a sepultura de 600 marinheiros espanhóis”, o número dos tripulantes do galeão da frota do rei Filipe V quando, no dia 8 de Junho de 1708, ao tempo da Guerra da Sucessão em Espanha (1702-14), foi afundado pela armada do almirante inglês Charles Wager.

Ao PÚBLICO, Alexandre Monteiro, investigador do Instituto de Arqueologia e Paleociências da Universidade Nova de Lisboa (UNL), diz que o lugar do naufrágio do San José é “um sítio arqueológico importantíssimo para a Colômbia, para a Espanha e, no limite, para toda a humanidade”. Daí considerar que a questão da propriedade não tem aqui nenhuma relevância. “Retiremos o tesouro da equação – ou, de forma mais pragmática, evitemos que seja vendida uma única moeda desse alegado tesouro, e a questão deixa de se colocar”.

Uma cápsula do tempo
Para o arqueólogo português, o galeão “é uma cápsula do tempo onde morreram 600 pessoas, porque nele estão a carga, os pertences pessoais, os vestígios, enfim, um cadinho onde se fundiram as ideologias, a cultura, os sonhos, as misérias, as glórias dos Grandes de Espanha e os anonimatos dos marinheiros de Huelva, a fleuma dos artilheiros alemães e a sujeição dos escravos africanos”, explica, via email.

No mesmo sentido se manifesta José Bettencourt, arqueólogo náutico do Centro de História de Além-Mar (CHAM), também da UNL. Realçando que, “para um arqueólogo, uma moeda de ouro vale tanto como um caco de barro”, este investigador acha que o processo do San José “está a ser mal conduzido”, e que a própria atenção que a comunicação social tem dado ao tema, abordando-o pelo lado mais sensacionalista do “tesouro” – há quem avalie a carga do galeão entre os mil e os cinco mil milhões de euros –, tem ajudado a “distorcer” um assunto que deveria ser visto apenas na perspectiva arqueológica e científica.

José Bettencourt nota, de resto, que “a Espanha não está a colocar a questão pelo lado da propriedade”, antes defendendo, até como subscritora da convenção da UNESCO, que a embarcação deve ser estudada e musealizada como património da humanidade.

O arqueólogo lembra ainda, como exemplo de boa prática neste domínio, o Caso Oranjemund, relativo aos destroços de um navio português do séc. XVI descobertos em 2008, na Namíbia, e que foram tratados e estudados numa parceria de investigadores dos dois países, seguindo a doutrina da UNESCO.

José Bettencourt nota que, como acontece com Espanha, também Portugal tem milhares de navios no fundo dos mares por todo o mundo. “O problema é que o Estado português não tem capacidade financeira para actuar antes dos caçadores de tesouros”, dedicando a esse tema “um investimento muito reduzido”. Acresce a isso, para as situações exteriores às nossas águas territoriais, “o melindre político e as tensões de um eventual neocolonialismo, que vêm sempre ao de cima nesses casos”, conclui o arqueólogo do CHAM.

O lobby dos caça-tesouros
Este estado das coisas abre espaço para a actuação do fortíssimo lobby dos chamados caça-tesouros, que Filipe Castro, arqueólogo náutico português actualmente a trabalhar no departamento de Antropologia da Universidade do Texas, classifica como “um negócio de criminosos”. “Começou aqui nos EUA a seguir à Segunda Guerra Mundial como uma coisa artesanal, na Florida, onde havia navios afundados por todos os lados. Primeiro, tiravam os canhões: se eram de bronze, fundiam-nos, se eram de ferro, vendiam-nos e as pessoas metiam-nos no jardim”, escreve Filipe Castro num comentário por email ao caso San José. E explica que o verdadeiro tesouro “são os investidores”, e que actualmente a caça ao tesouro “é um negócio global, associado às lavagens de dinheiro, à venda de armas e de antiguidades”, mas também ao tráfico de pessoas e até ao terrorismo.

“Os caçadores de tesouros fazem aos sítios que trabalham o mesmo que os criminosos do Daesh [Estado Islâmico]: destroem os sítios e vendem os objectos com valor de mercado. Só que não se filmam. Pelo contrário, contratam empresas de relações públicas e aristocratas e banqueiros”, diz o arqueólogo.

Alexandre Monteiro cita o caso da recuperação, pelo Estado espanhol, em 2007, dos bens da fragata Las Mercedes, afundada em 1804 junto ao Cabo de Santa Maria, no Algarve, para realçar a importância que a Convenção da Unesco começou finalmente a ter neste domínio.

Alguns anos antes, caçadores de tesouros tinham pilhado os bens das fragatas La Galga e Juno (afundadas respectivamente em 1753 e em 1802, na costa americana da Virgínia), mas Espanha fez valer nos tribunais americanos a reclamação da propriedade. “Estes casos revestiram-se de grande e paradigmática importância em termos de jurisprudência internacional – embora os tribunais decidam sempre em conformidade com o princípio de Imunidade Soberana dos Navios de Guerra e de Estado”, acrescenta o investigador da UNL, referindo-se à prevalência do direito de propriedade do país a quem pertence a bandeira da embarcação.

Regresso aos tribunais
E é aos tribunais internacionais que José Bettencourt prevê que acabará por ir parar também o caso San José. “Não vejo aqui espaço de diálogo. Imagino que o galeão vai ser alvo de salvados pelos parceiros privados, e a Espanha acabará por levar o caso a tribunal, quando chegar ao sítio e descobrir que ele já estará destruído, como aconteceu no caso Las Mercedes”, diz.

Já Alexandre Monteiro antecipa que Portugal irá debater-se, mais tarde ou mais cedo, com uma situação idêntica. “Falando em termos estritamente venais – logo capazes de suscitar idêntica cobiça por parte dos caçadores de tesouros –, existe uma centena de navios com cargas preciosas a bordo naufragados em águas portuguesas”, diz. E cita, como mais conhecido, o caso da nau espanhola Nuestra Señora del Rosário, afundada em Tróia, em 1589, com cerca de 22 toneladas de prata.

Mas o arqueólogo e investigador acha que, “pela similitude que apresenta com o San José, a nau Santa Rosa será o caso mais emblemático”. Explica tratar-se de “uma embarcação de 66 canhões, construída em Lisboa em 1716”, que foi destruída “num incêndio e subsequente explosão nos paióis da pólvora, em 1726, quando regressava da Bahía a Lisboa”, e quando transportava cerca de 10 toneladas de ouro – pereceram então 700 portugueses. Deverá encontrar-se “em águas territoriais brasileiras, ao largo do Cabo Santo Agostinho, Pernambuco”, acrescenta Alexandre Monteiro, notando que “um dia destes, Portugal terá que se confrontar com um destes casos”: um navio com a sua bandeira de Estado, “com um tesouro a bordo pronto a ser vendido em leilão”.

“Infelizmente, a julgar pela inacção que tem demonstrado para com as pilhagens levadas a cabo em navios portugueses naufragados em Moçambique e em Cabo Verde, não me parece que o nosso país tenha a hombridade e o respeito que os nossos vizinhos demonstram ter pelas suas naus e pelos seus mortos no mar. Mas, lá está, Espanha pega os touros em pontas e nós, cá em Portugal, só lidamos touros embolados”, diz Alexandre Monteiro.

 

 

 

Sugerir correcção
Ler 1 comentários