Da arte de “empreender”

Quando essa palavra tão desgraçadamente falha de estética fonética, “empreendedorismo”, ainda não se tinha tornada mais feia, grotesca mesmo, pela utilização abusiva dos últimos anos, havia numa cidade da margem sul do Tejo um grupo de malta que mostrava saber o que é isso de empreender. Empreender nobremente, criando valor - outra expressão hoje tenebrosa. Empreender porque assim os obrigava o temperamento e o contexto.<_o3a_p>

Aliás, que se lixe o empreendedorismo, até custa escrevê-lo novamente, que esta é uma história mais antiga. Havia gente com ideias. Havia vontade e oportunidade. E ele fez-se. Ele, o Barreiro Rocks, nascido em 2000 quando empreendedorismo ainda não era uma palavra horrorosa (porque não sabíamos se existia realmente no dicionário). <_o3a_p>

Nasceu porque, nesse ano, havia três bandas com discos a sair e nada melhor para os lançar que juntar esforços e fazer uma festa. Como entretanto surgiu mais um disco, e já eram quatro bandas, então a festa teria que passar a festival. Ocupou-se uma sala, o bom povo rock’n’roll do Barreiro foi participar na celebração e de uma brincadeira muito séria nasceu um festival (seriíssimo na festa que proporciona). Sabemo-lo porque ano após ano fomos estando lá. E é impossível estar lá, nessa instituição popular que é o Grupo Desportivo Ferroviários, casa histórica do festival, sem nos sentirmos parte do que ali se passa.<_o3a_p>

Por vezes, as coisas mais simples são as melhores. Para quê complicar? Aproveita-se a tradição associativa do Barreiro e decide-se que, melhor que ir de encontro ao que o público quer (quem é que sabe o que quer o público?), será defender uma identidade, confiando que isso será reconhecido e acarinhado. Pelo meio, estabelecem-se pontes com quem partilha a mesma sensibilidade e vontade de se sentir parte da criação (um festival, dir-se-á) e eis que a Espanha rock’n’roll viaja com a euforia habitual até à cidade da Margem Sul, eis que o pessoal de Lisboa começa a perceber que 20 minutos de viagem não são tantos minutos assim e o pessoal do resto do país, entusiasmado pelos relatos, marcar também presença. <_o3a_p>

Estamos lá, no Ferroviários, nas ruas que a ele conduzem, no indispensável festim gastronómico pré-rock’n’roll, e saltamos com os Black Lips saídos directamente do aeroporto para o palco, aplaudimos a Nova Iorque dos Speedball Baby de Matt Verta-Ray, fazemos o pogo com os Parkinsons, acolhemos com todo o respeito a instituição Billy Childish, descobrimos Ty Segall, vemos o dia nascer enquanto ainda tocam as lendas madrilenas Los Chicos e vemos o dia já nascido enquanto se pede mais uma cerveja no bar e se comenta a conversa anterior sobre o Barreiro de antigamente com o mestre-de-cerimónias Crooner Vieira (nonagenário mais novo que nós todos). <_o3a_p>

Entretanto, enquanto fomos vendo e ouvindo, enquanto o Barreiro Rocks foi continuando, o dinheiro pode ter começado a pingar menos (a crise, sempre a crise, e onde é que já vai a conversa do “empreendedorismo”), mas o espírito que anima esta criação manteve-se firme. Há um documentário estreado, há uma exposição fotográfica e de arte gráfica na Associação Desenvolvimento Artes e Ofícios, há miúdos a pisar o palco com bandas que só nasceram porque o Barreiro Rocks lhes mostrou que há sempre formas alternativas de fazer as coisas.<_o3a_p>

15 anos depois, a festa que se transformou num festival continua. Não só estamos todos convidados, como seremos todos, também, esta criação feliz assente num conjunto de nobres qualidades: talento, imaginação e generosidade – tudo temperado com bom gosto e uma saudável dose de loucura.<_o3a_p>

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