E tudo o resto é jornalismo

Alguém, no Expresso, deve ter pensado na melhor maneira de sabotar o romance de Clara Ferreira Alves, já que, sem que ela tenha feito nada de mal, acordou dois sábados seguidos com a notícia de primeira página, no dito semanário, da publicação e da apresentação pública do seu romance; e ao terceiro sábado foi caluniada logo na capa da Revista do jornal – onde, enquanto colunista, ocupa uma posição de primeiro plano, todas as semanas - com uma foto e o anúncio de uma longa entrevista no interior. Igualmente plausível mas muito mais divertida é a hipótese de que, afinal, tudo foi feito sem más intenções, devendo-se apenas à inabilidade de quem não percebe nada de sociologia da literatura e desconhece as regras básicas do campo literário e da aquisição do capital simbólico: quanto mais os livros e os seus autores se fazem valer de meios heterónomos, mais os leitores autónomos desconfiam e se afastam. Tal inabilidade não é exclusiva do Expresso, impossível é encontrar um jornal que, sempre que se apresenta a ocasião, não puxe o brilho à sua “prata da casa”. E quando, como agora aconteceu, já nem é a prata da casa, mas a jóia da coroa que irradia, assistimos a um verdadeiro éclat, como aquele que a Princesa de Clèves provocou quando entrou no grande salão do baile. Em boa verdade, não chegámos a assistir ao prometido éclat dispensado pelos protocolos da vida literária porque ele foi ofuscado por um excesso de jornalismo: enfaticamente noticiada, entrevistada, fotografada e promovida no jornal que é casa sua, numa festa de família, a romancista, em vez de interromper o jornalismo para entrar na literatura, cedeu aos apelos do jornalismo redundante - aquele cujo fim é a autocelebração - para se tornar jornalista de si mesma. Mas nada disto tem grande importância. E como todos o gestos inábeis e, no fundo, ingénuos, este também tem o seu aspecto cómico: é como uma versão actualizada da história de Tales de Mileto, o proto-filósofo que enquanto caminhava se pôs a olhar para as estrelas, com uma pulsão científica e teórica, e, esquecido do chão onde punha os pés, caiu num poço, provocando o riso aberto e ruidoso da sua escrava da Trácia, que seguia atrás. Mas há uma pequena lição que nós, escravos da Trácia, muito embora rindo saudavelmente da imprudência alheia, devemos levar mais a sério: a quem se destinam e para quem são concebidos os suplementos culturais e as páginas literárias dos jornais? Para responder a esta pergunta, tenhamos em conta o exemplo do Expresso, neste episódio da publicitação do romance da Clara Ferreira Alves: o jornal foi incapaz de pensar que talvez estivesse a ser contraproducente e, embora não o categorizando, pressupôs a existência de um leitor inculto, acrítico e não autónomo. No entanto, ele imagina que se dirige em primeiro lugar às elites culturais e secundariamente a quem só procura algum entretenimento. Este desfasamento, longe de ser exclusivo do Expresso, é muito comum: há um populismo cultural praticado com boa consciência mesmo por aqueles que se manifestam contra todo os populismos políticos. Ora, o que acontece com as páginas culturais de uma ou outra publicação não seria grave se não fosse, em maior ou menor grau, uma regra geral: até um jornal como o Jornal de Letras e uma revista como a Ler, apesar dos respectivos nomes, são incapazes de imaginar um público letrado e uma verdadeira esfera pública literária. Na melhor das hipóteses, dão uma no cravo outra na ferradura e não servem ninguém. E, o que é pior, não fazem nem saem de cima.    

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