Novas gerações dão “sangue novo” ao cante alentejano

Grupos criados por jovens estão a dar "outra abordagem e inovação" ao cancioneiro tradicional alentejano, considerado Património da Humanidade, pela UNESCO, há um ano

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Cante alentejano foi considerado Património da Humanidade, pela UNESCO, a 27 de Novembro de 2014 Nuno Ferreira Santos

Uma taberna no Alentejo, com petiscos, vinho e público nas mesas, está pronta para receber um roteiro de grupos corais recém-criados por novas gerações para "dar sangue novo" ao cante alentejano, Património da Humanidade há um ano. "Ai, humildes filhos do povo / Tanto amor, por devoção / Ai, nada trazemos de novo / Mantemos a tradição", ouve-se na taberna, na aldeia de Cabeça Gorda, no concelho de Beja, pelas vozes do Grupo Coral Bafos de Baco, de Cuba, formado por jovens entre os 14 e 24 anos.

Os Bafos de Baco são um dos grupos criados por jovens, no distrito de Beja, em 2014, durante o processo de candidatura do cante alentejano a Património da Humanidade, que participam no roteiro para animar tabernas e cafés da aldeia por uma noite. O grupo foi criado em Novembro de 2014, dias antes da classificação do cantar tradicional do Alentejo como Património da Humanidade, pela UNESCO, no dia 27 daquele mês, para "mostrar que o cante alentejano está vivo e as camadas mais jovens interessam-se pelo cante", conta à agência Lusa António Caixeiro, dos Bafos de Baco. "Somos filhos e netos de cantadores, sempre vivemos no meio do cante", frisa o jovem, de 24 anos, confessando: "O cante é um mundo, o mundo que eu amo e canto todos os dias para me sentir bem".

Numa das mesas da taberna, entre o público, de várias gerações, António Prengana, de 58 anos, "encantado" com os Bafos de Baco, diz à Lusa: "Cantam muito bem, sim senhor, muito bom, gosto de ouvir. Esta malta nova vai cantando melhor do que os mais velhos, tem vozes mais bonitas". "É uma classe. Gosto muito de ver a rapaziada nova" a cantar, diz à Lusa António Palma, de 76 anos, "camarada" de mesa de António Prengana, lembrando que, quando era novo, cantou "muito" cante alentejano pelas ruas da aldeia com amigos, apesar de, na altura, "no tempo do Salazar", ser "proibido".

Na mesa ao lado, Sara Rodrigues, de 27 anos e que já pensou em fazer parte de um grupo coral alentejano, defende que a criação de grupos por jovens é "uma mais-valia", porque "só assim temos garantia de que [o cante] não se perde". Além dos Bafos de Baco, durante o roteiro, no âmbito da iniciativa "Cabeça Gorda, Terra de Cante" deste ano, promovida pelo Grupo Coral Moços da Aldêa, também cantam Os Boinas, de Ferreira do Alentejo, Os Mainantes, de Pias (Serpa), e Os Cantadores de Beringel, Beja.

Os grupos criados por jovens estão a dar, "com garra e muito respeito", uma "outra abordagem e inovação" ao cancioneiro tradicional alentejano, o que "é muito importante" para salvaguardar o cante, diz à Lusa Pedro Mestre, ensaiador de vários grupos corais alentejanos. "Mais importante do que isso", os novos grupos revelam que "o cante está vivo e presente na vida das pessoas", diz Pedro Mestre, frisando: "A juventude há de fazer o cante alentejano ouvir-se por muitos e muitos anos".

No âmbito da iniciativa e antes do roteiro, o grupo anfitrião, Moços da Aldêa, criado em Janeiro de 2014 e formado por jovens entre os 16 e 35 anos, inaugurou a sua sede numa loja do mercado de Cabeça Gorda, onde cantou três modas. Impulsionados pela candidatura, que "veio dar um grande alento ao cante", Os Moços da Aldêa nasceram da "vontade" de amigos de "juntar malta nova em torno do cante" para "cantar as nossas raízes, que estavam a perder-se", explica à Lusa Ruben Ramos, de 28 anos, do grupo.

"A malta nova pode dar continuidade e sustentabilidade ao cante, porque tem vontade de cantar e fazer coisas", como o roteiro, e quer "reforçar o cante, não só criando grupos novos, mas também entrando para os grupos mais velhos", defende Ruben Ramos. Na taberna, após os Bafos de Baco, vão actuar Os Mainantes, que nasceram em Julho de 2014 de "uma aposta de Pias de não deixar morrer o cante", conta à Lusa o director do grupo, António Lebre, de 40 anos. "Via estes jovens com fones nas orelhas e a abanarem a cabeça, noutra onda. Vê-los agarrados ao cante é uma grande alegria", porque "sou daqueles que sobreviveram às intempéries do tempo" em que "o cante era foleiro, associado às pessoas de uma faixa etária mais velha, às tabernas, aos bêbados", desabafa António Lebre.

José Roque, da MODA - Associação do Cante Alentejano, lembra à Lusa que, "há alguns anos, havia um discurso negativo" sobre o futuro do cante devido à "preocupação com o envelhecimento dos grupos corais". Mas com a "erupção" da candidatura, que "mexeu com o Alentejo", os jovens "perceberam que era hora de se movimentarem" e criaram grupos, que são "uma aposta na continuidade e no plano de salvaguarda" do cante alentejano. "Os jovens são cada vez mais a essência do cante e serão eles que têm de continuar" com o cante alentejano, que "é único no mundo", defende José Roque.

Antes de saírem da taberna, a caminho da próxima etapa do roteiro, os Bafos de Baco cruzam-se com os próximos a entrar em cena, Os Mainantes, e juntos, com a pronúncia da terra onde nasceram e que os vê crescer, cantam uma moda. "Ao levantar das nalguinhas; De abalada a gente vai", despendem-se Os Bafos de Baco, ajudados pelos Mainantes, e, no fim, entre o público, alguém grita: "Viva o cante".

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