Jeffrey Lewis: pequenas histórias da grande cidade

Jeffrey Lewis, músico e autor de BD, é um grande cronista da cidade onde sempre viveu, Nova Iorque. Forasteiro na sua própria cidade, é essa condição que torna especiais as suas canções e as personagens à margem que as habitam. Manhattan é o seu novo (grande) álbum

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Jeffrey Lewis, o Woody Allen da música indie, como já foi escrito, ou “o melhor letrista dos EUA”, como o disse em tempos Jarvis Cocker Jacob Blickenstaff

Jeffrey Lewis, 40 anos. Cantautor formado na cena anti-folk nova-iorquina de meados dos anos 1990 por onde passaram Beck, vindo de Los Angeles, ou Kymia Dawson e Adam Green, pessoal local. Jeffrey Lewis, respeitado ilustrador e autor de banda-desenhada que cruza essa sua primeira vocação com a música que descobriu em si quando se deparou com um microfone aberto no clube anti-folk do seu bairro, era ele um jovem de 20 e poucos anos. Jeffrey Lewis, o Woody Allen da música indie, como já foi escrito, ou “o melhor letrista dos EUA”, como o disse em tempos Jarvis Cocker, homem que sabe um par de coisas sobre versos de canções.

Quase 20 anos de carreira, sabemos lá quantos álbuns editados (é difícil seguir-lhes o rasto) e as coisas que nunca mudam: “Todas estas actividades, criar livros e compor canções, são aquilo que fazes quando não tens verdadeiramente rede social, quando não estás a sair com pessoas e a divertir-te com elas. Eu sou parte da comunidade de pessoas que não estão ligadas à comunidade”. É e não é verdade o que Lewis nos diz desde Nova Iorque, mais propriamente, desde o bairro de Manhattan, aquele onde passou a infância e ao qual regressou recentemente. É verdade porque, apesar dos elogios dos seus pares, apesar das digressões com nomes tão diversos quanto Stephen Malkmus, The Fall, Black Dice, Fiery Furnaces, Mountain Goats ou Roky Erickson, Jeffrey Lewis surge sempre perante nós como alguém que está à margem a observar atentamente aquilo que os nossos olhos não vêem habitualmente – ou a ver, em nós, os “integrados”, aquilo que não conseguimos ver em nós próprios. Mas não é verdade, porque Jeffrey Lewis não é nova encarnação de Daniel Johnston, o músico de culto, talentoso certamente, obviamente perturbado, com quem tanto foi comparado pelas gravações roufenhas, onde sobressaía um talento melódico evidente, que registava em início de carreira. Lewis desenha, escreve e compõe precisamente pelo contrário: por estar totalmente dentro da universo que o rodeia.

Manhattan, o seu novo álbum, o primeiro pela editora Rough Trade desde A Turn In The Dream-Songs (2011), e que se segue a Jeffrey Lewis & The Jrams, gravado em oito horas e auto-editado o ano passado, é uma viagem geográfica, sentimental e no tempo, pelo bairro a que regressou. E vemos: as ruas, os edifícios, os bares, os apartamentos e os sons do quotidiano (algumas canções são atravessadas pelo ruído urbano da cidade). Viajamos ao passado para conhecer um amigo de adolescência (Scowling crackhead Ian), descobrimo-nos ao lado das paredes finas que o separam de um velho nonagenário no apartamento ao lado (Sad screaming old man), acompanhamo-lo no longo passeio, atravessando o bairro, com a namorada a seu lado (Back to Manhattan), e ouvimo-lo cantar uma tocante canção de amor e saudade (Outta town).

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O poster com que a galeria Le Poisson Rouge anuncia a exposição retrospectiva de Jeffrey Lewis

“As ideias, a inspiração e a atmosfera que passam no trabalho estão sempre muito próximas do que nos rodeia. Se o meu mundo fosse diferente, se vivesse no Kansas, na Cidade do México ou em Dublin, certamente essas cidades se tornariam parte do que faço”, explica. “Se estiver a desenhar um prédio, um caixote do lixo ou uma caixa de correio, desenho automaticamente os objectos à minha volta em Nova Iorque. O mesmo acontece com as canções. Nova Iorque é um universo permanente ao longo da minha vida, portanto, torna-se parte de tudo o que faço”.

Na sua música, identifica-se o subtexto folk na guitarra acústica que serve de base sonora a tantas canções, e na forma como as palavras se sucedem, ricas e bem desenhadas. Percebe-se igualmente que Lewis calcorreia as mesmas ruas que acolheram os passos de Lou Reed, ou não fosse ele igualmente atraído pelo “wild side”, neste caso mais cartoonesco que visceral, “wild side” ainda assim. E também há o talento para fazer de uma canção a conjugação de ritmo minimal com um discurso torrencial que nos obrigamos a seguir atentamente (Bob Dylan, Jonathan Richman e Mark E. Smith nas proximidades), e, claro, a irresistível tentação punk de acelerar o tempo da canção, libertar a electricidade da guitarra e gritar o que há para gritar – mas com um órgão vintage em fundo para matizar a agressividade ou, como em “The pigeon”, a último do álbum, com um spoken word que adapta o The Raven de Edgar Allan Poe à vida de um pombo nova-iorquino. Em resumo: Jeffrey Lewis é um grande escritor de canções e Manhattan um álbum a incluir nos obrigatórios da sua longa discografia (entre álbuns, EPs e colaborações, a Wikipedia regista 25 edições desde 1997). Mas olhemos mais de perto.

Ser pessimista e ser optimista (ao mesmo tempo)
O amigo de adolescência cantado, Ian, é um viciado em crack que há-de encostar uma navalha à garganta de Lewis e que parte uma cadeira na cabeça de um pobre coitado num bar. O velho do outro lado da parede geme e grita a noite toda e dirá ao pobre Lewis que um dia foi como ele, mas que agora, depois da atravessar uma guerra, depois de passear gatos e fazer vida pacata, depois de 40 anos sentado num bando de jardim, resta-lhe apenas “scream in the darkness, the pain inside 90 years, empty and heartless”. O passeio romântico por Manhattan, belíssimos oito minutos de canção dolente, vassouras marcando o ritmo dos passos, serve apenas para Jeffrey Lewis terminar a relação com a rapariga (que não sabe que tudo acabou). E a tocante canção de amor e saudade, Outta town, é realmente isso, um amante em casa com saudades da namorada que foi visitar a mãe: mas passou apenas um dia e meio, e a saudade já se tornou obsessão: “porque hei-de apanhar a barata que sobe a parede, se não estás cá?”, pergunta.

Jeffrey Lewis é, ao mesmo tempo, um pessimista que escolheu rir-se do absurdo da existência e um optimista que, apesar da reconhecer a nossa inata tendência para a crueldade e para a estupidez, ainda se consegue maravilhar com a capacidade que temos, de tempos a tempos, para amar e cuidar uns dos outros. “Esse paradoxo é onde o meu melhor trabalho ganha impacto. O optimismo e o pessimismo correm em mim em simultâneo e é quando toco essa zona de confusão que se abre o espaço mais poderoso e interessante em que posso estar”, comenta.

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Jacob Blickenstaff

Manhattan é, provavelmente, o seu álbum mais maturado. Foi gravado com uma banda baptizada Los Bolts ao longo de vários meses, ao contrário dos oito dias que lhe demorou o anterior, e foi aquele a que dedicou mais reflexão. Criador por natureza intuitivo, debruçou-se sobre cada palavra dos versos cantados e experimentou várias versões para cada uma das canções. Tinha 37 preparadas para gravação. Editou e editou até delas restarem as 11 que agora ouvimos, todas centradas, de uma forma ou de outra, no bairro a que agora regressou. Quando olha para trás, sente que muito mudou desde que entrou pela primeira vez no clube de microfone aberta para testar as primeiras canções. “Mudou o estilo da escrita e a minha habilidade enquanto compositor. Comecei sem saber nada sobre como gravar ou fazer uma digressão e aprendi tudo enquanto fui caminhando. Julgo que defini padrões mais elevados para mim mesmo”. Mas há coisas que nunca mudam.

No momento em que fala com Ípsilon, tem pela primeira vez uma grande exposição retrospectiva numa galeria da sua cidade, a Le Poisson Rouge. “Faço muita coisa, os meus livros de BD, os livros de arte, os sketchebooks, mas não estou envolvido no meio galerista, por isso tudo isto é novo para mim. E é simpático ver tudo reunido, talvez mil ilustrações em todo o espaço, cobrindo as paredes do chão ao tecto, porque nunca tenho oportunidade de ver tudo junto”.

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Parte da ficha técnica do álbum Manhattan, desenhada pelo próprio Jeffrey Lewis e incluída na arte gráfica da edição física do disco

Enquanto músico ou criador de banda-desenhada, ainda assim, continua a sentir-se um outsider. “99 por cento das bandas que estão em Nova Iorque e que fazem parte da cena independente mudaram-se para cá de outras parte do país. Têm, portanto, uma aventura e uma experiência partilhadas. Vieram até cá para criar qualquer coisa cool. Eu nunca me separei das minhas raízes para criar novas raízes a partir do nada. O lugar a partir do qual observo dá-me uma perspectiva completamente diferente daquilo que é a cultura criativa dominante em Nova Iorque”, refere. “De certa forma, é isso que tenho para oferecer ao mundo do rock independente. Eu estou demasiado mergulhado em Nova Iorque, quando a cultura nova-iorquina define-se por pertenceres a um colectivo de forasteiros”.

É isso que não mudou e que as suas músicas reflectem como poucas outras. É isso que, desenhando, compondo, observando, não queremos que mude. Manhattan é bom demais para pensarmos num Jeffrey Lewis diferente.

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