Encruzilhadas no jazz

Na recta final da 24ª edição do Guimarães Jazz, o melhor veio de um dos grandes nomes da história do jazz, o veterano Archie Shepp, actualmente com 78 anos.

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O lendário saxofonista Archie Shepp superou todas as expectativas Paulo Pacheco

Actualmente a celebrar o seu 24º ano de existência como um dos mais importantes festivais de jazz do país, o Guimarães Jazz afirma-se como um raríssimo caso de sucesso de público, registando salas sistematicamente cheias num ambiente vibrante e estusiástico. Uma conquista à qual acresce o facto de envolver activamente uma enorme comunidade de músicos jovens que participam não apenas nas concorridas jam sessions que ocorrem todas as noites do festival em regime after-hours, mas também nas inúmeras actividades paralelas, tais como workshops, exibição de documentários ou animações musicais a decorrer um pouco por toda a cidade.

Estivemos presente apenas nos últimos três dias do festival e o primeiro concerto a que assistimos foi o de James Farm, supergrupo liderado pelo saxofonista Joshua Redman, que integra ainda Aaron Parks no piano, Matt Penman no contrabaixo e Eric Harland na bateria, quatro instrumentistas poderosos com inúmeras provas dadas nos mais diversos contextos. Tocando um jazz pós-bop de fortíssima inspiração pop, trouxeram para este concerto um repertório baseado no seu mais recente álbum, City Folk, lançado no ano passado. Com um nível de dinâmica e energia notáveis, os quatro músicos procuraram insuflar vida num conjunto de temas simplista, deliberadamente construído para agradar. E quase o conseguiram.

A secção rítmica formada por Harland e Penman é absolutamente avassaladora (destaque para o solo de contrabaixo em North star, original da autoria de Harland), Parks consegue desconstruir com eficácia algumas das sequências harmónicas mais básicas que já ouvimos num contexto jazz e Redman mostrou estar em grande forma técnica, com um som vibrante e robusto. Mas nem o notável empenho dos músicos nem a deliberada beleza de alguns dos temas (destaque para a balada Farms, com um poderoso solo de Redman, e para Otherwise) impediram o tédio melódico e harmónico que se instalou a meio do concerto.

Apresentando-se no dia seguinte, o lendário saxofonista Archie Shepp superou todas as expectativas, surpreendendo o público presente com uma actuação arrebatadora. Actualmente com 78 anos, Shepp surgiu em palco deslocando-se com alguma dificuldade, deixando antever o pior. No entanto, quando soaram as primeiras notas de U-Jamaa (ou Freedom, dedicado à sua filha), o som que se ouviu do saxofone foi algo de assombroso, mágico. Fraseando de forma vibrante e enérgica, e transformando continuamente o som com inúmeras variações na embocadura do saxofone, Shepp rapidamente confirmou o seu estatuto de lenda viva do jazz. E se a presença do seu saxofone se revelou imponente no palco do CCVF, o maior impacto deu-se ao segundo tema, quando Shepp arranca uma inspirada interpretação vocal do blues de Duke Ellington Don't get around much anymore. Por esta altura já o público se tinha rendido por completo ao charme e talento de Shepp.

Até ao final, e ao longo de quase duas horas de concerto (com direito a encore), o saxofonista, acompanhado pelo seu habitual e eficaz quarteto, foi alternando entre o saxofone e a voz, em versões luminosas de temas como Chelsea bridge, The stars are in your eyes ou Hope 2, este último dedicado a Elmo Hope. Uma noite memorável.

Para a noite de sábado, a assinalar o encerramento do festival, estava programado aquele que se anunciava como um dos pontos altos do evento, a actuação da Maria Schneider Orchestra. Discípula assumida do grande Gil Evans, com o qual trabalhou como assistente, Schneider afirmou-se desde o início dos anos 90 como digna sucessora do mestre, compondo e arranjando para grandes formações com invulgar talento e sofisticação. Regressando agora a Guimarães pela terceira vez, a compositora e arranjadora surge à frente de uma banda de 17 elementos para apresentar o seu mais recente álbum, The Thompson Fields, inspirado na infância passada no ambiente rural do Minnesota. Ao longo dos dois primeiros temas, Green piece e Nimbus, torna-se de imediato evidente que a formação que a acompanha não tem o brilho e dinâmica habituais, com os arranjos a soarem um pouco baços, pouco vibrantes, mais próximos de uma música erudita de câmara do que do jazz. Tentamos perceber porquê. A maioria dos músicos são colaboradores de longa data de Schneider. Na secção rítmica, assinala-se a substituição de Ben Monder pelo guitarrista Lage Lund. Relativamente novos na banda são também o baterista Johnathan Blake e o acordeonista Ron Oswanski. Mas rapidamente nos apercebemos que, para além de alguma falta de alegria e dinâmica por parte dos músicos, são os arranjos que surgem monótonos, repetitivos, longe da exuberância de planos dinâmicos, melódicos e harmónicos a que a compositora nos habituou. Os destaques solistas sucedem-se com pouca surpresa e criatividade. A primeira excepção surge com um belíssimo solo de Marshall Gilkes, no trombone, e depois de uma ligeira melhoria na dinâmica geral da banda, surge aquele que é o grande momento da noite - uma versão brilhante de Arbiters of evolution, com duas improvisações memoráveis de Donny McCaslin e Scott Robinson nos saxofones tenor e barítono, respectivamente. Um final algo morno para um festival que se afirma como peça fundamental no mapa jazz do nosso país.

 

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