Olhe que talvez, olhe que talvez…

Como foi possível o PS e o PCP viabilizarem um governo de esquerda com um acordo, ou lá o que é aquele papel A4 que eles assinaram na cave? Foi preciso voltar à longínqua noite de 6 de Novembro de 1975, quando Mário Soares deu uma coça televisiva de quatro horas ao “olhe que não!” de Álvaro Cunhal.

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Os representantes do Partido Socialista (PS) e do Partido Comunista Português (PCP) chegaram um pouco atrasados ao encontro — 40 anos e alguns dias — mas o que lá vai, lá vai. À sua espera estavam dois jornalistas a preto e branco (incluindo Joaquim Letria a fumar em directo, como convém aos momentos históricos). António Costa e Jerónimo de Sousa sabiam que, para ultrapassarem o ódio da praxe e se concentrarem no derrube da PàF, teriam de repetir o “Soares/Cunhal”. O pai dos debates. A mãe de todas as zangas da esquerda. Palavra por palavra, ou quase. A VE (Vacina da Esquerda). O moderador acendeu três cigarros e deu a palavra a António Costa, que começou:

— O Partido Comunista entrou para este Governo com um pé, ou meio pé, no Governo e...

— Desculpe interromper já, mas nós não vamos entrar! Ficamos a ver da bancada. Isto é o XXI Governo, não é o VI...

— Não me estrague o raciocínio, dr. Cunhal, ai, sr. Jerónimo, não nos boicote já o acordo! Bom, o PCP quer ficar com o corpo e o outro pé fora do Governo!

— O que o Partido Comunista não fica é no Governo para caucionar uma viragem à direita, isso é evidente que não fica. O partido não fica no Governo para apoiar medidas antidemocráticas e antipopulares, não fica. O Partido Comunista estará a apoiar o Governo enquanto considerar que, na verdade, é útil a sua presença.

— Mas renuncia já às moções de censura ao PS?

— Olhe que não, olhe que não! Nós queremos eleições e queremos sufrágio universal, mas queremos em primeiro lugar restabelecer as liberdades em todo o território nacional. Há regiões onde há bandos fascistas, poder local fascista, milícias fascistas de caceteiros, não é, que perseguem os democratas que ousam ler tal ou tal jornal da esquerda, ou que não ligam a Internet para ler O Observador a não ser para se rirem dos direitinhas a espumarem da boca com a hipótese de a esquerda os derrubar!

— Bem metida, dr. Cunhal, ai, sr. Jerónimo...

— Obrigado, Mário Soa... ai, António Costa... Mas adiante, ou melhor, avante! Primeiro que sejam assegurados os direitos e liberdades dos cidadãos, depois falemos em democracia.

— Ui, essa até dói ouvir, dr. Cunhal, ai, senhor Jerónimo.

— O Partido Socialista tem neste momento uma grande responsabilidade histórica: ou vai com as forças progressistas, com as forças da esquerda, com as forças da revolução e ainda vai a tempo de ir ou, na verdade continua a sua relação com a direita, com as forças da reacção como o PPD, com alianças digamos contranatura com o CDS...

— O PS é um partido de esquerda que quer instaurar em Portugal uma sociedade socialista, portanto uma sociedade sem classes, mas em liberdade. É que o sôtor teima em querer fazer uma revolução com uma minoria.

— Não, não, é querer fazer uma revolução com revolucionários, é querer fazer uma democracia com democratas! Mas temos de lutar contra essa pressão gigantesca da reacção sobre o povo, inclusivamente religiosa, essa propaganda que diz que os comunistas matam os velhos com um tiro atrás da orelha...

— Bom, já que fala nisso, caro Álvaro, ai, querido Jerónimo, estamos a chegar ao ponto crítico do nosso teste. Aqui vai: o que o partido comunista deu provas durante estes meses é que quer transformar este país numa ditadura!

— Olhe que não, olhe que não!

— Depois de ouvir o dr Cunhal, ai, o senhor Jerónimo, fiquei com a convicção de que, se fizesse essa aliança, ganharia uma medalha Lenine.

— Essa política não lhe dá a medalha Lenine, mas pode-lhe dar a medalha Sá Carneiro, ai, a medalha Passos Coelho/Cavaco Silva, ou outra vinda desses lados.

— Agora também teve graça. Há mais dessas?

— Uma revolução tem de se fazer contra alguém. Alguém que representa os interesses das classe privilegiadas. É muito difícil conciliar grandes exploradores com explorados. Houve uma caça às bruxas comunistas em todo o aparelho do Estado. Saneamentos de democratas progressistas. E o Partido Socialista soprou bastante as chamas contra as sedes dos partidos comunistas. Quem semeia ventos colhe tempestades.

— O dr. Álva... ai... o sr. Jerónimo gosta de se fazer de vítima. Que os comunistas são perseguidos. Na verdade, os comunistas criaram uma imagem de perseguidores. Em toda a parte, com o seu comportamento sectário em relação à população, dogmático, agressivo em relação às populações, criaram um estado de antagonismo efectivo em relação ao Partido Comunista. Não se trata propriamente de anticomunismo mas de anti-PCP. O senhor ri, mas o povo português não ri, porque não quer voltar a uma ditadura!

— Pare lá com essa conversa que já mete nojo, ó António Costa. Daqui a bocado saio desta baiuca e nicles, deixo mesmo o Passos a primeiro-ministro e damos uma alegria ao inquilino de Belém!

— Este é o nosso teste da resiliência, como diz o outro, o teste do algodão branco. Jerónimo de Sousa, conseguirá mesmo apoiar um Governo do PS durante quatro anos seguidos, sem nos moer o juízo, sem apresentar moções contra nós, sem alinhar com a direita nas votações, sem me... argh, grunf, me chamar “farinha do mesmo saco”?!

— Vou-lhe dar uma resposta franca e directa, António Costa: olhe que talvez, olhe que talvez.

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