Duas obras contrastantes da música germânica do século XVIII

Os três concertos realizados na Casa da Música no passado fim-de-semana, no âmbito do ciclo À volta do Barroco apresentaram duas obras maiores da música germânica do século XVIII por dois agrupamentos residentes.

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Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música DR

Mantendo-se fiel ao intuito original que marcou a estreia da obra em 1787 – a reflexão sobre o sentido espiritual de cada uma das frases proferidas por Cristo na cruz – o espectáculo As Sete Últimas Palavras de Cristo na Cruz de Franz Joseph Haydn, na Casa da Música, propôs um enquadramento diferente das palavras de Cristo, considerando-as para além do contexto religioso e atribuindo-lhes sentidos mais amplos e actuais através da alternância de andamentos musicais e de textos ditos pelo actor João Reis, de autores predominantemente dos séculos XIX e XX, entre os quais estão nomes tão variados como Martin Luther King Jr., Simone Weil, Antonin Artaud, Maurice Maeterlinck, Teixeira de Pascoaes, Leonard Cohen e Patti Smtih, entre outros.

No centro do palco, por trás da orquestra, foi montada uma instalação vídeo (cuja estrutura tripartida remete para um retábulo) na qual foram projectadas imagens captadas na actual cidade de Jerusalém. Ao longo do concerto o actor realizou uma movimentação cénica simbólica, confundindo-se inicialmente com os membros da orquestra e, gradualmente, subindo a estrutura que suportava o dito retábulo até atingir o seu topo na frase “Pai! Em tuas mãos entrego o meu espírito”.

A obra As Sete Últimas Palavras de Cristo na Cruz, quase integralmente constituída por andamentos lentos, representa um enorme desafio interpretativo (particularmente ao nível do fraseado, das nuances de intensidade e do sentido dramático do discurso musical). Se nos aspectos técnicos a orquestra esteve quase sempre bem – com excepção de algumas entradas menos rigorosas ou de uma ou outra nota menos afinada, perfeitamente compreensíveis numa actuação ao vivo – já ao nível interpretativo a execução poderia ter sido mais consistente. 

Gradualmente as cordas foram perdendo a rigidez interpretativa inicial e a orquestra demonstrou maior naturalidade e sentido expressivo, particularmente a partir da IV Sonata (“Deus, meu Deus, porque me abandonaste?”). A partir de então a execução musical teve vários momentos bons, dos quais destaco a própria Sonata IV na qual o fraseado foi particularmente bem conseguido, tirando partido do balanço da métrica ternária. Destaco também a Sonata V onde o sentido dramático proporcionado pelo contraste entre o singelo e o trágico foi bastante eficaz. E ainda a Sonata VI cujo fraseado do tema em si bemol maior foi elegante e delicado, exprimindo um sentimento de paz adequado à frase “Está consumado!”.

Recorrendo a gestos claros, ora enérgicos ora subtis, de acordo com o texto musical, o maestro Alexander Liebreich procurou realçar as características expressivas próprias de cada uma das peças de Haydn. Apesar de ter sido um bom concerto faltou algo mais para que a interpretação fosse capaz de mover o ouvinte de maneira mais intensa e tocante. Deste modo a orquestra nem sempre fez jus ao conceito de expressão das emoções humanas que marcou a música do final do século XVIII. Talvez através de um sentido de colectivo mais sólido e de um trabalho estilístico mais depurado, a interpretação de As Sete Últimas Palavras de Cristo na Cruz tivesse sido mais expressiva e convincente.

Viagem à música barroca

Apesar de ser uma das mais conhecidas obras do grande mestre alemão e de estar amplamente editada em disco, a interpretação ao vivo dos seis Concertos Brandeburgueses de J. S. Bach é sempre um acontecimento imperdível. Esta foi, sem dúvida, a opinião do público que encheu a Sala Suggia nos dois concertos que se realizaram na passada tarde de domingo – o primeiro às 16h com os concertos nº 1, nº 6 e nº3; o segundo às 18h com os concertos nº 5, nº 4 e nº 2.

Ambos os concertos foram comentados pelo cravista da orquestra Fernando Miguel Jalôto, cujas palavras muito contribuíram para uma audição mais consciente e esclarecida de cada um dos concertos de Bach. O formato de concerto comentado possibilitou uma enriquecedora “viagem à música barroca” e à própria vida do grande mestre alemão.

A orquestra funcionou de forma excelente tanto a nível colectivo como individual, adaptando-se com naturalidade e eficácia à diversidade das formações instrumentais e à reunião de estilos que caracterizam os concertos de Bach. A qualidade da execução deveu-se à clareza e à expressividade do fraseado, à precisão rítmica, ao equilíbrio sonoro entre os vários grupos instrumentais e ainda ao sentido dramático obtido através da exploração das nuances e dos contrastes de timbre e de dinâmica. Estas características observaram-se tanto nos andamentos lentos ao estilo de sonata como nos andamentos rápidos com texturas mais densas e complexas.

De entre os músicos solistas merece especial destaque o violinista Huw Daniel, solista em cinco dos concertos, que aliou à sua enorme capacidade técnica um profundo sentido expressivo. Destacou-se também o oboísta e flautista Pedro Castro, solista nos concertos nº 1, nº 2 e nº 4, cuja execução conjugou uma grande maturidade na interpretação e a consciência da sonoridade individual e de conjunto. Para além destes dois músicos também os restantes solistas proporcionaram excelentes interpretações: José Rodrigues Gomes na flauta de bisel nos concertos nº 4 e nº 2, Raquel Massadas e Miriam Macaia que formaram o concertino de violas no concerto nº 6 e Marta Gonçalves no traverso no concerto nº 5. Os membros da secção de contínuo souberam colocar-se ora numa função de suporte discreto ora numa posição de destaque de acordo com as características do discurso musical. O maestro Laurence Cummings incutiu a energia e expressividade que habitualmente caracterizam as suas interpretações, características estas também evidenciadas no concerto nº 5 em que integrou o concertino enquanto cravista.

A eficácia da interpretação foi evidente auditivamente e também visualmente: no gesto e na postura corporal dos músicos, revelando uma grande disponibilidade e um vasto entendimento do texto musical, num concerto que, por todas as suas características atesta a grande qualidade da música antiga em Portugal actualmente.

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