O cinema a correr riscos

O destaque maior vai para a obra belíssima sobre Chantal Akerman, a recentemente desaparecida cineasta belga.

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I Don't Belong Anywhere - Le Cinéma de Chantal Akerman DR

Como tem sido habitual nos últimos anos, a secção "Riscos" alberga algumas das mais entusiasmantes, e mais inclassificáveis, propostas do DocLisboa. É uma zona de programação propensa a filmes que interrogam os limites de qualquer coisa (de uma percepção comum do que o cinema é ou deve ser, por exemplo), a filmes que se assumem como ensaios (por vezes puramente estéticos), a filmes que dum modo ou doutro tomam o cinema como seu objecto.

Neste último caso encontramos na selecção deste anos um punhado de filmes que vale bem a pena destacar. O par de filmes de Peter Delpeut (Lyrisch Nitraat, de 1991, e Forbidden Quest, de 1996, exibidos no domingo às 16h15 e dia 28 à mesma hora, sempre na Culturgest), que são um exemplo de montagem e recuperação de excertos de filmes mudos, submetidos à usura do tempo (ou ao lirismo "sem autor" trazido pela deterioração e usura do tempo), realizado numa época em que o exercício ainda não era tão comum como veio a ser. Temos também uma história "subjectiva" do documentário, Cinéma Documentaire, Fragments d'une Histoire, pelo grande crítico e cineasta francês Jean-Louis Comolli (dia 25 às 22h na Culturgest e dia 27 às 22h30 no Cinema City Campo Pequeno).

Depois, há uma série de encontro com cineastas muitíssimo importantes recentemente falecidos. São os casos de Before the Beginning (domingo, 21h30, e 26, 16h, sempre na Culturgest), filme "a quatro mãos" assinado pelo belga Boris Lehman e pelo desaparecido Stephen Dwoskin, britânico, numa espécie de tentativa de "auto-retrato mútuo" que por aí também se liga a uma das tendências históricas dos "Riscos"); How To Smell a Rose (25, 22h, Culturgest, e 27, 22h30, Cinema City), onde o americano Les Blank (que morreu em 2013) filma a visita a um nome fundador do documentário moderno, o inglês Richard Leacock (que morreu em 2011); ou ainda, caso em que felizmente estão todos ainda vivos, Life Goes On (29, 22h15, cinema Ideal), filme de Albano da Silva Pereira sobre o grande fotógrafo e cineasta Robert Frank.

Mas o destaque maior tem que ser para I Don't Belong Anywhere - Le Cinéma de Chantal Akerman (29, 22h15, Ideal), obra belíssima sobre a recentemente desaparecida cineasta belga, que lhe dá a voz, põe-na a discutir a obra, e a faz regressar, num procedimento simples e eficaz, a lugares por ela filmados, de Manhattan a uma brasserie de Bruxelas. É um filme luminoso sobre o cinema de Chantal, que acaba - como não o ver assim agora? - a encenar o seu desaparecimento, deixando-a embrenhar-se naqueles desertos do sul dos EUA que ela filmou em Sud.

Merece um enorme destaque, também, a descoberta do Five Year Diary de Anne Charlotte Robertson, obra amadora, rodada em super 8 ao longo de vários anos, apenas recentemente revelada, que é um caso espantoso de criatividade (a espécie de "feérie doméstica") e de prática do cinema como necessidade pessoal vital.

Robertson, que morreu em 2012 com 63 anos, sofria de distúrbios psicológicos que obrigavam ao seu internamento periódico, e estes filmes trabalham também uma forma de reflectir, e esconjurar, esse infortúnio (vamos ver três episódios de uma série no total longuíssima, dia 28, 21h15, e 1 de Novembro, 18h00, sempre na Culturgest).

Menção ainda para o reencontro com José Luis Guerin (Le Saphir de Saint Louis e o seu habitual método de partir do particular ao geral: reflexão sobre a relação da Europa com a escravatura a partir de um quadro do século XVIII - dia 28, 18h45, e 31, 14h15, sempre Cultugest), para dois episódios da série "Eniaios" do grande cineasta experimental americano de origem grega Gregory Markopoulos (dia 25, 15h45, Culturgest); para a descoberta de um raro filme de René Vautier, também ele recentemente falecido, que evoca com crueza a Guerra da Argélia (Avoir 20 Ans dans les Aurés, de 1972, mostrado dia 27, 22h, Culturgest, e 31, 18h00, Ideal), e para três filmes de Nicolas Klotz nunca estreados em Portugal, La Blessure, Pariah e La Question Humaine, realizados entre 2000 e 2007, que com rigor e complexidade encenam algumas questões fulcrais da Europa contemporânea, entre a imigração e os novos modelos de relações laborais.

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