Um camião pode levar um cinema solar a aldeias de África e da Ásia

Viajam por África e pela Ásia, em camiões, com o objectivo de projectar filmes em aldeias esquecidas. Na bagagem levam um cinema a energia solar e documentários sobre globalização. João Meirinhos faz parte da caravana do “Cinéma du Désert”

Há seis meses que a casa de João Meirinhos é um camião alemão com 40 anos. Serve de habitação e de transporte na viagem que teve início na Turquia e que já o levou a passar por países como Roménia, Bulgária, Geórgia, Rússia e Mongólia. João faz parte do “Cinéma du Désert”, que percorre milhares de quilómetros para projectar filmes em aldeias esquecidas em África e na Ásia. Davide Bortot e Francesca Truzzi, voluntários da organização não-governamental italiana Bambini Nel Deserto, são os companheiros de estrada, juntamente com dois cães. Chegam a uma aldeia, estacionam o camião, montam o ecrã gigante e esperam que as pessoas apareçam para sessões gratuitas. O castelo insuflável gigante completa o cenário de festa que fazem questão de criar sempre que decidem parar numa povoação.

Em 2010 e 2011, o português de 30 anos participou, pela primeira vez, numa expedição do “Cinéma du Désert”, projecto que arrancou em 2009, na África Ocidental (vê o vídeo ao lado). Percorreu 16.000 quilómetros em África e bateu o recorde de países visitados — 22. Nessa viagem, durante as várias semanas passadas no Burkina Faso, fizeram mais do que sessões de cinema: instalaram uma rádio comunitária a energia solar e criaram “uma espécie de garagem para crianças de rua que não têm um sítio onde aprender um ofício”. Os três amigos tinham acabado de chegar a Moscovo quando João falou com o P3, via Skype. Para trás ficaram os 6.000 quilómetros percorridos no último mês, desde a Mongólia à capital russa. O objectivo era sair da Rússia antes que o visto expirasse — prazo que cumpriram por apenas três horas.

Só na Mongólia, o grupo ficou por perto de dois meses. Tal como em outros locais, exibiram documentários não-verbais e sempre com a permissão dos realizadores. A ideia é que “sejam de acesso simples para toda a gente, independentemente da linguagem”. “Babies” (2010, Thomas Balmès) — que acompanha um ano da vida de quatro bebés de quatro países diferentes, entre os quais a Mongólia — é um dos filmes de eleição, a par de “Baraka” (1992) e “Samsara” (2011), ambos de Ron Fricke. “Home” (2009, Yann Arthus-Bertrand) também consta do catálogo e foi a razão para o “Cinéma du Désert” passar a ser a energia solar. “Era um bocado contraditório estarmos a mostrar um documentário sobre ecologia e sobre como mudar o mundo e depois termos que pôr gasolina dentro de um gerador”, recorda João. Quando este clique se deu, acabaram com a “contradição” e a projecção ficou a cargo de painéis solares e baterias.

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Nos últimos meses foram feitas perto de 40 sessões gratuitas de cinema DR

A globalização é o conceito comum a todos os filmes que mostram. “Não quero cair na armadilha do português que leva o cinema a África”, sublinha o jovem. “Nós não somos neo-colonialistas (…) Queremos abrir uma porta de comunicação com o poder da imagem e, a partir daí, conhecer os problemas sociais.” Acredita João que a saúde “não se trata somente ao nível físico”: o factor psicológico importa e “momentos de lazer e acesso a cultura grátis são essenciais para o bem estar de qualquer pessoa”.

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A partilha é a linguagem humana, acredita João Meirinhos, 30 anos DR

Partilha, a linguagem humana 

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Projecção de um documentário DR

Há quem fique desconfiado quando um antigo camião de bombeiros se aproxima e dele saem três jovens, dois cães e muita parafernália que muitos nunca viram. Julgam que lhes vão pedir dinheiro em troca das sessões e assustam-se com os efeitos visuais dos filmes, mas acabam por se juntar às centenas à volta do ecrã gigante. Na Geórgia, quando as crianças se aperceberam de que não se pagava para entrar no insuflável, compraram gelados aos três amigos como forma de agradecimento.

Depois de uma assustadora passagem por uma tempestade de neve de quatro dias — com direito a sentir o camião de dez toneladas a derrapar no gelo —, João e os dois amigos chegaram a Moscovo. Daí partiram para a Letónia e na mira está já Berlim, onde querem organizar sessões em campos de refugiados. Isto se conseguirem o financiamento necessário para as deslocações: apesar de terem patrocinadores, os jovens tiveram que recorrer ao "crowdfunding" para conseguirem regressar da Mongólia. A campanha, que esteve online este Verão na plataforma Indiegogo, resultou em 3.625 euros.

João Meirinhos, formado em cinema e com um mestrado em antropologia visual feito em Manchester, aproveita as viagens com o “Cinéma du Désert” para trabalhar nos próprios documentários. A liberdade e o xamanismo são dois temas que o interessam, tal como a partilha. “Qual é a linguagem humana quando não temos a língua em comum?”, questiona. A partilha, defende. É por isso que continua a jornada de mostrar a globalização a quem não a sente na pele, agora pela Europa.

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