Precisávamos de mais Romance(s) como o que nos traz Aldina

Teve direito a um espectáculo único e foi pena. Porque Romance(s), de Aldina Duarte, mereceria uma temporada em sala. Se o Portugal de hoje assim o permitisse.

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Aldina Duarte fotografada para Romance(s) Rita Carmo

Fosse Portugal um país diferente e ainda hoje estaríamos a ouvir os Romance(s) de Aldina Duarte, numa sala mais pequena, numa temporada como as que é hábito fazer “lá fora”. Mas Portugal é como é – e por isso Romance(s) ficou confinado à memória de uma noite.

Noite triunfante, apesar de tudo, num CCB cheio, onde Aldina se mostrou à vontade logo de início (ou pelo menos assim a entendemos), nesse tão belo Apenas o vento, biografia que lhe inventou Manuela de Freitas e tão bem soa no fado Franklin: “Deu-me Deus tudo o que quis/ Já nem sei de quanto fiz/ Se foi Deus ou se fui eu/ deu-me alegrias e pranto/ Mas esta voz com que canto/ Foi o vento que me deu”. Estavam assim feitas as apresentações, que o público prontamente aplaudiu.

Vento que passa, como conclui tal fado? Que passa e que fica. Calhou tal espectáculo, a que Aldina se dedicou com esmero, ocorrer nas últimas horas do sacramental “dia de reflexão” antes dos votos de 4 de Outubro, mais precisamente na noite de dia 3, no Grande Auditório do CCB, em Lisboa. A solo, foi para ela uma estreia, já que tem sido a Culturgest a sua sala de eleição. Mas, tirando o excessivo (neste contexto) tamanho do palco, obstáculo que ela contornou com habilidade na marcação dos espaços no palco e no (bom) uso das luzes, a amplidão da sala só a traía quando o estilar raiava o sussurro. Mas como abdicar de algo que, nela, é tão essencial à expressão do seu canto? Terão os cantores que gritar para se fazerem entender numa sala assim?

Nada disto, porém (apesar de alguns comentários ouvidos à saída, lamentado a ininteligibilidade de algumas passagens vocais), maculou Romance(s) no seu todo. Aldina estruturou-o de forma inteligente, alinhando-o como numa história onde, primeiro, vieram fados que marcaram e ainda marcam a sua evolução fadista: depois de Apenas o vento (do disco Contos de Fados), ouvimos Antes de quê? (de Apenas o Amor, o seu disco de estreia), A estação das cerejas (de Crua), De costas voltadas (também de Contos de Fados) e Ai meu amor se bastasse (de Apenas o Amor).

Traçada a carreira (e a vida, a par dela) neste conjunto notável de fados, vieram os convidados: Camané, Maria da Fé, Carlos do Carmo. Foram estes e não outros, não porque acima deles só exista “o próprio fado” (como Aldina justificou, numa síntese demasiado redutora, já que, sem pôr em causa a genialidade dos presentes, outros nomes há no fado que merecem viva distinção) mas porque os três tiveram e têm grande relevância no evoluir da sua carreira. E aqui estarão os três de parabéns, porque a carreira de Aldina é das mais coerentes e estimulantes que o fado nos tem dado nos últimos anos. Camané cantou, da forma assombrosa que só ele sabe, Escada sem corrimão (de Esta Coisa da Alma, editado em 2006, o mesmo ano em que Aldina lançou Crua), Maria da Fé mostrou o seu estilo e garra em Valeu a pena (e vale sempre a pena ouvi-la) e Carlos do Carmo, logo na primeira frase de Duas lágrimas de orvalho, deixou o público em sentido: poucas vozes há que resistam assim, tão claras e expressivas, ao tropel inexorável dos anos. Com Carlos do Carmo houve ainda direito a outro fado: Aldina cantou com ele Vou contigo coração, recriando ao vivo o dueto que ficou registado no disco que ele gravou com fadistas mais novos. Foi pena que nada mais se ouvisse destas três singulares vozes, mas talvez não houvesse tempo.

Depois de um instrumental a cargo dos dois músicos que acompanharam Aldina desde o início da noite, Paulo Parreira (guitarra portuguesa) e Rogério Ferreira (viola), começou verdadeiramente o Romance, mas só a voz e guitarra. Aldina reduziu-o a nove dos catorze fados, numa criteriosa escolha. Ouviram-se, assim, nalguns casos com dramaticidade acrescida (plenamente justificada no contexto do espectáculo), Amor em dó maior, Lugares-comuns, Fada do lar, Dois ponteiros, O recado, Fogo posto, A maçã de Adão, Sem chão e Arte do fado. Ficaram de fora As duas graças, As noivas, Labareda, Os pontos nos ii e Cessar-fogo, ou seja, para quem tem presente a história (a de um triângulo amoroso onde se avalia o peso do amor e da amizade), os momentos referentes ao encontro, ao casamento, à raiva, ao luto (em sentido figurado, claro) e ao recomeço.

E foi depois de Aldina nos dizer, em A arte do fado, que “dê a vida o que nos der/ vão-se as mágoas do passado/ quando podemos dizer/ a nossa vida num fado”, que surgiu em palco a outra marca deste Romance, aquela que justifica o “s” do seu plural: o som dos Dead Combo. Face a face, Paulo Gonçalves (que produziu este disco de Aldina) e Tó Trips fizeram soar um outro fado, num instrumental com a sua assinatura sonora, eléctrica, lânguida e espectral. O fundo do palco iluminou-se de vermelho e ouvimo-los a partir de duas quase silhuetas em semipenumbra.

Tó Trips saiu, Pedro ficou e, com ele, Aldina voltou a Sem chão – com outro chão instrumental. Foi o epílogo reinventado de Romance(s), agora de plural justificado. Depois Aldina, de novo com Paulo Parreira e Rogério Ferreira, cantou dois fados do seu bem cuidado repertório: Fado com dono (que Maria do Rosário pedreira escreveu a partir de Orfeu e Eurídice para Contos de Fados) e Princesa prometida (de Aldina, no Fado Triplicado, escrito para Mulheres ao Espelho).

A noite poderia ter ficado por aqui, mas os inevitáveis (e merecidos) encores ainda trouxeram Auto-retrato, que João Ferreira-Rosa primorosamente escreveu para Aldina (e que ela nunca gravou, embora o tivesse cantado na Culturgest, na celebração dos seus 20 anos de carreira) e, a fechar, o efusivo Xaile encarnado, que João Monge escreveu para Crua e foi posto a brilhar no tradicional Fado da Adiça. Uma noite quase perfeita, onde Aldina deu visivelmente o seu melhor e onde os “astros” pareceram favorecê-la, exceptuando num ligeiro engano numa letra, que ela aliás prontamente corrigiu, engano esse de que depois pediu desculpa ao público presente.

Se Romance(s), o disco duplo, é um fabuloso contributo de Aldina para os caminhos do fado, o espectáculo que dele nasceu só veio comprovar esse estatuto. Que haja mais, por favor!

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