Afonso Cruz e o livro de uma palavra só

Em Flores, Afonso Cruz constrói uma história a partir da perda da memória. Sem esquecer as circunstâncias políticas do Portugal de hoje.

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Afonso Cruz retoma em Flores um episódio aflorado em A Boneca de Kokoschka: uma súbita amnésia Rui Gaudêncio

Flores é o título do novo romance de Afonso Cruz. Só tem uma palavra e há uma razão para isso. ​O escritor, que nasceu em 1971 e é também ilustrador e músico da banda The Soaked Lamb, conta que os leitores sempre reduzem os seus livros – mesmo aqueles com títulos grandes, como Para Onde Vão os Guarda-Chuvas, Jesus Cristo Bebia Cerveja, Os livros que devoraram o meu pai – a uma única palavra: “a boneca”, “o pintor”, “os guarda-chuvas”... Por isso, desta vez resolveu o assunto à partida e deu-lhe um título de uma palavra só.

Evita assim coisas, “muito divertidas”, como a que lhe aconteceu quando começou a escrever num jornal e na apresentação que dele fizeram se viu com surpresa descrito como autor de um livro intitulado O Pinto Dentro do Armário. Foi um engano. “Referiam-se ao livro O Pintor Debaixo do Lava-Loiças, falharam as palavras todas”, conta Afonso Cruz a rir-se. “Uma vez, num festival literário na Madeira, há alguns anos, uma senhora chegou ao pé de mim e disse-me que admirava muito os meus livros em especial aquele das ‘canalizações’ [risos]. Era O Pintor Debaixo do Lava-Loiças. Achei que era uma coisa esporádica mas, no ano passado, na Feira do Livro de Lisboa, uma senhora disse-me exactamente a mesma coisa: ‘Gosto muito das canalizações’.”

Como a memória nos forma

No seu livro A Boneca de Kokoschka (Prémio da União Europeia para a Literatura 2012), Afonso Cruz aflorou o episódio de um músico que perde a memória: um dia acorda sem saber tocar. “Era um músico genial [Pat Martino] que sofre um aneurisma e quando acorda da operação não se lembra de como se faz um dó na guitarra. Decide voltar a aprender a tocar com os discos que ele próprio tinha gravado, ou seja consigo mesmo. Torna-se um guitarrista ainda melhor do que era, acaba por se superar. É uma viagem interior muito bonita, um virar-se para dentro para se reaprender”, lembra Afonso Cruz, acrescentando que esse foi “o ponto de partida” para este seu novo romance, Flores.

E embora a personagem que neste livro perde a memória, o senhor Ulme, não tenha absolutamente nada a ver com este músico, o tema do livro é precisamente o mesmo: como a memória nos forma. “Este senhor tem um aneurisma e acaba por se esquecer de tudo o que eram memórias afectivas: sabe o número do Multibanco mas não se lembra do primeiro beijo. Sabe tudo sobre música, mas não se lembra de ter visto uma mulher nua. Aliás é assim que o narrador de Flores se apercebe de que o senhor Ulme perdeu a memória.”

É esse narrador, um jornalista cansado da vida que leva, que vai a certa altura tentar recuperar-lhe as memórias afectivas, aquelas que o senhor Ulme esqueceu ao longo da vida. “Claro que é um trabalho impossível porque há imensas contradições. Se perguntarmos a uma pessoa que não gosta de nós o que pensa de nós, dir-nos-á que somos uma pessoa odiável; e se fizermos a mesma pergunta a alguém que nos adora, somos uns santos. É o que vai acontecer neste livro”, explica Afonso Cruz. É uma das riquezas de Flores, a teia e o puzzle que o escritor constrói e que nos fazem querer não largar o romance até ao fim (também tem graça chegar-se ao fim sem certezas, por causa de tantas versões contraditórias).

Como se sabe, também a memória é muito subjectiva e isso está reflectido na construção deste livro. “Mudamos a nossa memória à medida que vamos envelhecendo e que vamos reinterpretando as coisas. Cada pessoa terá uma ideia do que eu sou – que não coincide com a imagem que vejo ao espelho, nem física nem psicologicamente. Este romance também joga muito com isso, com a ideia de estarmos em frente ao espelho e das fantasias que temos nessas alturas”, explica o autor.  

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Esses momentos em que o narrador efabula ao espelho são um dos pontos fracos de Flores. É um elemento perturbador na leitura, que retira força ao romance. Por vezes o leitor deixa de saber onde está, de onde vem aquilo, quem são aquelas personagens. Afonso Cruz explica: “São personagens de sucesso, que o protagonista ambiciona. Muitas das nossas ficções têm a ver com este tipo de coisa: imaginarmos aquilo que gostaríamos de ter para as nossas vidas.”

Sobreviver à política

Surrealismos à parte, as duas personagens principais de Flores são fortes, bem construídas e muito diferentes na sua maneira de estar no mundo (embora estejam os dois a tentar recuperar o passado). “Um não tem passado e o outro vive numa rotina, acha que as coisas não têm sabor, não têm vida, não têm paixão. Enquanto um não se lembra do primeiro beijo, o outro dá um beijo como quem faz a cama ou como quem põe a máquina a lavar”, diz Afonso Cruz.

O narrador de Flores vive uma rotina, e tudo o que sai dela o perturba, o deixa angustiado, amargurado e irritado. “A rotina implica algum esquecimento, o acto que é eternamente repetido acaba por desaparecer e torna-se praticamente invisível. Muitas das coisas que vivemos –injustiças diárias, etc. –, e que poderiam afectar-nos de alguma maneira, deixam de o fazer e ganham invisibilidade, acabam por desaparecer do nosso quotidiano. Deixámos de ver os sem-abrigo, criámos uma certa dessensibilização em relação a assuntos ou a circunstâncias, o que de certa maneira também nos permite viver o nosso mundo de uma maneira mais leve”, justifica o escritor. 

Pelo contrário, o senhor que perdeu a memória sofre desmesuradamente com o que lê nos jornais e fica irritado e desesperado com as más notícias que o rodeiam e com as tragédias a que assiste. É assim que Afonso Cruz introduz no livro a hierarquia da distância, que nos faz sofrer menos com o que está mais longe de nós. “O valor da vida humana começa a diminuir à medida que se afasta de nós: dez mil chineses não é a mesma coisa que quatro espanhóis e não é a mesma coisa que o nosso vizinho ou que o nosso periquito. Ficamos mais chateados com as coisas que acontecem aos que estão mais perto de nós. Não deveria ser assim, a vida humana não é hierarquizável através da distância, mas a verdade é que lidamos com o mundo dessa maneira.”

Flores está escrito na primeira pessoa – é a primeira vez que o autor o faz num romance. Partindo de um caso particular – a recuperação do passado do senhor Ulme –, Afonso Cruz consegue dar todo o retrato de uma aldeia alentejana e ao mesmo tempo aludir ao presente político. “Quando aqueles dois se juntam, daí só podem vir desgraças, é como ter um presidente como o que temos e um primeiro-ministro como o que temos, ou um governo destes e uma troika destas” (p. 95). “O Gonçalves (chamava-se mesmo Gonçalves), que tinha vivido no Brasil, acabara de voltar. O Coelho, pelo que sei, estava morto. Olhando para a política destes dias, diria que, apesar de todos os defeitos de um pide, morreu o coelho errado.” (p. 226). 

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Quando perguntámos ao autor – sentado na esplanada da Cinemateca Portuguesa, em Lisboa, onde decorreu esta entrevista, ainda antes das eleições de domingo , porque sentiu essa necessidade, responde: “O protagonista está a viver os dias de hoje e achei que seria quase uma cobardia não falar também do momento que estamos a passar. Se escrevo sobre o quotidiano, é este. No entanto não quero nomear, não com medo do que quer que seja, mas porque acho que as pessoas não merecem. Porque também tenho a ambição ou a expectativa de que o meu livro sobreviva a este Governo e continue a ser lido. E espero que eles não sejam relembrados porque não são maus o suficiente para o serem e também não são bons o suficiente para ficarem num livro. Os maus exemplos, aqueles terríveis, têm de ser lembrados; quanto a eles, o melhor é ficarem com esta indiferença, com o desprezo na literatura.”

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