Nocturno do deserto
Em B’lieve I’m Going Down, Kurt Vile afasta-se do imaginário folk e cria canções mais cheias, mais completas. Para ele são canções do deserto. Para nós são grandes canções.
Honestamente, não precisávamos de telefonar a Kurt Vile para o ouvir dizer que B’lieve I’m Going Down é “um disco de um solitário”. Ao fim e ao cabo, todos os álbuns de Vile soaram, até agora, como discos de um solitário. Eram discos de solitário antes Vile lançar Smoke Ring For My Halo, o disco de 2011 que o tornou figura a ter em conta, e continuam a sê-lo quatro anos depois.
Não precisávamos, portanto, mas lá telefonámos. Tal como nos seus discos, Kurt Vile tem em conversa o tom de voz de quem acabou de sair da cama, ou o tom de voz de quem está com uma ressaca brutal. Em 2011 encontrámo-lo em Paredes de Coura e comprovámos que o homem não aprecia muito comunicar com os restantes seres humanos. Sempre que fala, fá-lo como se tivesse de pedir licença aos escassos neurónios activos. Mas desta feita ele está ligeiramente diferente e até conversa. Entre bocejos, mas conversa. E por vezes até com prazer.
Digamos que o homem está feliz, até mesmo orgulhoso, ao ponto de ser capaz de dizer coisas como “Wheelhouse [um dos temas do disco] é a melhor faixa que alguma vez gravei”. Percebe-se a razão da alegria: Smoke Ring For My Halo pode ter feito dele uma mini-estrela, mas olhando agora à distância era um disco que se distinguia quase exclusivamente pelos dedilhados delicados de guitarra; B’lieve I’m Going Down é outra coisa, um álbum muito mais completo, cheio, do que qualquer um dos seus antecessores. É um disco de quem já não faz folk, faz canções. Ouça-se Life like this: abre com piano e de repente há duas guitarras cujos arranjos são admiráveis. A melodia de voz tem qualquer coisa de hip-hop, na forma como cada sílaba é colocada. Desta vez, Kurt Vile claramente sabe o que está a fazer – e quer falar disso.
“Não sei se notaste, mas há mais piano do que nunca neste disco." É difícil não notar: está por todo o lado. Até piano eléctrico, como em Dust bunnies, um dos grandes temas de B’lieve I’m Going Down. “Quer dizer, já havia piano noutros discos, mas neste o piano tornou-se um protagonista”, prossegue Vile. “Não me apetece estar até ao fim da vida a fazer o mesmo disco, sempre centrado no mesmo instrumento. Por muito bem que se toque guitarra, há um limite para o que uma guitarra pode fazer”, diz. E não se fica por aqui, continua a falar. “Há dedilhados bonitos, há canções ao piano, há canções mais eléctricas, até canções ao banjo há”, continua o homem que não gosta de estar acordado de manhã. “Este é o ponto a que cheguei: posso fazer todo o tipo de canções e soar coeso à mesma."
Diga-se que só mais tarde, quando relemos as declarações, é que nos apercebemos que há aqui uma certa empáfia. O homem fala tão devagar quer tudo o que diz soa extremamente humilde. Também tem outra característica: ao contrário de outros músicos, que gostam de falar de si ou do mundo, Vile só fala da música. Não explica as canções, quando muito conta o processo que o leva a estar nesta posição: poder fazer o que lhe apetece sem pensar muito no assunto. Sendo que, obviamente, ele pensa muito no assunto: “Para ser sincero, quando estou a compor não penso em nada. Mas depois quando acho que estou perto de ter um disco e vou gravar, por norma fico paranóico. Ponho tudo em causa, acho que está tudo errado. Nesse sentido, este disco foi uma bênção."
Uma bênção do deserto, note-se. Vile foi até ao Rancho de La Luna, onde os Queens of The Stone Age costumam gravar, para tocar com os Tinariwen. E na última noite teve uma espécie de epifania: “Fiquei a tocar guitarra até tarde. De repente está a sair uma melodia lindíssima da minha guitarra e consigo que a voz acompanhe. O sol está a nascer, olho lá para fora e sinto-me verdadeiramente afortunado. Foi verdadeiramente uma daquelas coisas."
Uma semana depois de escrever essa canção, a tal Wheelhouse, Vile regressava ao rancho, desta feita para gravar as suas canções: chegara a hora de fazer novo disco. “Tinha estado a experimentá-la com os Tinariwen”, recorda, “e gravei-a ao vivo com os Violators [a sua banda] em dois takes. “Foi um momento perfeito. Sem pensar em excesso, sem partir a cabeça à volta dos arranjos. Devia ser sempre assim."
Um bocadinho triste
Mas não é sempre assim. Por norma, Kurt Vile dá por si a “passar demasiado tempo à volta de cada disco, a sobre-pensar tudo”. Só quando pousa o disco e vai “tocar ao vivo um pouco mais” é que a “reacção do público” lhe devolve a confiança. “E de súbito já não estás só." Porque, no resto do tempo, a solidão é total. O seu método de composição implica isso: "Espero que as miúdas estejam deitadas e que a minha mulher adormeça, e é então que começo a tocar. Está escuro e eu estou no sofá e todos os dias deito-me um pouco mais tarde – umas semanas depois já estou a deitar-me ao nascer do sol."
Sendo o processo tão solitário, seria de esperar que ele apreciasse ter um produtor, mas B’Lieve I’m Going Down é o primeiro disco que Kurt Vile produz sozinho. “Se eu fosse os Pink Floyd ou os Radiohead, fazia sentido ter um produtor. Mas eu faço este som, que é um som limitado, toco há muitos anos, não preciso de um produtor. Ou, pelo menos, queria ver se não precisava de um produtor." Isto porque além de não apreciar ter gente a dizer-lhe o que fazer, também não é suficientemente organizado: “Produtores custam dinheiro e obrigam a marcar salas. Nós acabámos de gravar tudo no rancho mas já tínhamos gravado algumas coisas noutras terras e eu prefiro assim: quando tenho vontade de gravar chamo a banda e gravo. Porque é que hei-de gravar tudo em dias pré-marcados, em que até posso não ter vontade de tocar, se posso fazê-lo quando me apetece?”.
Diz bastante sobre o método de trabalho de Vile – e sobre o seu feitio. "Os meus discos acontecem à medida que a vida acontece. Vou para casa, gravo uma canção, depois misturo-a noutro sítio qualquer e passam-se dias até gravar outras canções. Nem eu sei quando as vou gravar. Não sou o tipo de gajo que aprecia gravar tudo de uma vez, num só sítio, a horas certas. Não faço nada assim, porque haveria de fazer música assim?”.
Mas há mais razões que o levam a preferir este método, como não querer “que um disco soe demasiado profissional”. “Se eu tivesse um produtor entraria em estúdio a uma segunda de manhã e não podia sentar-me ali porque acolá é que a minha voz é mais bem captada, e tinha de ter cuidado com este ou aquele cabo. Assim o disco soa como se tivesse gravado isto no meu sofá. Soa nocturno e vulnerável e talvez até um bocadinho triste."
E pronto, isto é o máximo de auto-exposição que Vile concede a si mesmo. Ao contrário de outros compositores, fala muito pouco sobre a sua vida privada – até Bill Callahan é capaz de mencionar mais detalhes sobre si mesmo. “Sou reservado por natureza”, explica. “Prefiro falar sobre o que leio do que sobre mim”, diz. E o que raio lê ele? “Enquanto escrevia o disco andava a ler o Cormac McCarthy e a Flannery O’Connor." Nada que não estivéssemos à espera de ouvir: em I’m an outlaw, faixa que começa com uma tremenda linha de banjo, faz uma menção a Sangue Sábio, de O’Connor.
“Posso até dizer que uma canção é triste, mas acho que não tenho de explicar em que é que essa tristeza consiste”, continua. “Até porque acho que nas minhas canções há tanta tristeza como alegria, tanto drama como comédia."
Tristeza e alegria ainda vá que não vá. Agora, drama e comédia? Numa canção de Kurt Vile? “Bem, drama e comédia talvez seja exagero”, ri-se ele. O que há de certeza neste disco é deserto. “Há um pouco de alegria, um pouco de tristeza e muito deserto." Como é que “deserto” se traduz musicalmente? Não fazemos ideia. Diz ele que o deserto “é um sítio solitário mas cheio de luz”. Bem, pelo menos para quem se pode vir embora.