Desterrados, mas perfeitos

Há cinco anos que a selecção da Síria joga fora do país devido à guerra civil, mas está a ter uma qualificação invencível rumo ao Mundial 2018.

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O último jogo disputado pela Síria foi uma goleada de 6-0 em Phnom Penh, frente ao Cambodja, a 8 de Setembro Samrang Pring/Reuters

O futebol sírio é uma manta de retalhos difícil de descrever. Tudo o que se possa fazer à distância será sempre a recolha e transmissão de fragmentos. Podemos falar do campeonato que continua a decorrer, apesar da guerra civil, mas limitado apenas a equipas de Damasco e Lataquia. Podemos falar do treinador sírio feito refugiado que foi pontapeado por uma jornalista húngara, mas que encontrou trabalho em Espanha. Podemos falar da selecção da Síria Livre que tenta sobreviver no Líbano. Dos muitos jogadores que morreram durante a guerra civil. Do capitão da selecção de juniores que fugiu para a Alemanha. No meio de tudo isto, a selecção de futebol tentar ser em campo a representação de uma unidade que não existe no terreno.

Quem olhar apenas para os resultados, diria que o futebol sírio está num grande momento. Em três jornadas já disputadas, lidera o seu grupo nas qualificações asiáticas para o Mundial 2018 só com vitórias, 13 golos marcados e nenhum sofrido, e dois pontos à frente de uma das grandes potências futebolísticas do continente, o Japão, que defronta a 8 de Outubro próximo. Em termos de ranking FIFA, a Síria deu um salto de 30 lugares em um ano, ocupando o 121.º posto e o 15.º entre os asiáticos. O que a mera enumeração de resultados não diz é que a selecção não joga no seu país há cinco anos e que quase todos os jogadores estão fora da Síria.

Em rigor, esta selecção representa a Federação de Futebol da Síria, que, por seu lado, é controlada por Bashar al-Assad (que controla menos de metade do país), e pode ser entendida como um instrumento de propaganda para um regime que prendeu e torturou futebolistas suspeitos de ligações com os rebeldes. “[A selecção] projecta uma sensação de normalidade no caos e empresta um certo grau de prestígio ao governo”, diz o jornalista James Dorsey, autor de um livro sobre futebol no Médio Oriente, citado pelo Guardian. Mas esta selecção é tudo menos normal.

Fazer os jogos em casa sem os seus adeptos, por exemplo, não é normal. “Quando praticamos desporto, tudo o queremos é representar o nosso país, no nosso país, com os nossos adeptos”, lamenta Abdulrazak Al Hussein, da selecção síria, que tem usado Oman como base para os jogos em casa – segundo relatos da imprensa internacional, apenas Damasco e Lataquia têm estádios a funcionar como tal, e os recintos de outras cidades sírias estão a ser usados como bases militares pelas partes em conflito.

A selecção síria ainda terá um longo caminho pela frente rumo ao Mundial da Rússia, mas o que fez não deixa de ser formidável, seja entendido como propaganda ou como uma amostra de superação dos futebolistas. “O mundo inteiro só pensa coisas más da Síria e isso deixa-me triste. Até na Turquia, onde jogo, há tantos refugiados que há quem não os queira deixar entrar. Mas estes meus compatriotas estão a fugir porque não têm alternativa. Ou fogem, ou morrem”, diz Sanharib Malki, avançado do Kasimpasa, da liga turca, depois de ter passado vários anos na Bélgica. Para ele, o que esta selecção pode dar, sem escolher lados, é ir ao Mundial e “dar uma grande prenda ao povo”.

* Planisférico é uma rubrica semanal sobre histórias de futebol e campeonatos periféricos

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