Remar contra a indiferença

É preciso combater activamente a propaganda anti-refugiados e os discursos do ódio, que não só nos diminuem enquanto homens e mulheres, como nos manipulam enquanto cidadãos

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Kai Pfaffenbach/Reuters Kai Pfaffenbach/Reuters

Nas últimas semanas, a Europa revelou o seu pior e o seu melhor. As sucessivas suspensões de Schengen, as declarações de Orbán, certas incredulidades proferidas nas redes sociais, colocam dúvidas ao futuro de um projecto europeu verdadeiramente inclusivo. Por outro lado, multiplicam-se iniciativas de acolhimento aos refugiados, marchas “Refugees are Welcome”, e claro – um ícone do nosso tempo –, a partilha desenfreada de imagens, textos e vídeos de apoio, na qual eu assumidamente participo. Há ainda um terceiro grupo que, não obstante sensível à causa dos refugiados, ataca a hipocrisia do Ocidente, sensibilizado apenas momentaneamente pelo horror inenarrável da morte de uma criança.

“Numa semana passaram de hordas de migrantes a seres humanos.” “Só falam nos refugiados porque está na moda!”. Charlie Hebdo satirizou a falsa compaixão cristã e a solidariedade descartável, utilizando a imagem de Aylan Kurdi em dois cartoons que tanto enfureceram como granjearam elogios. Clara Ferreira Alves (num artigo publicado no "Expresso") pôs igualmente o dedo na ferida, ao acusar os líderes europeus de chorarem “lágrimas de crocodilo” agora que o sangue foi derramado à nossa porta. Mas o que é que fica a faltar no meio disto?

Falta uma desconstrução mais séria do discurso que nos procura impedir de perceber que quem assobia para o lado perante esta crise (ou se preocupa só quando o “politicamente correto” exige) é também quem tende a compactuar com a austeridade, com o financiamento de grupos armados, com o silêncio e a falta de coragem política da Europa.

O discurso "mainstream" sobre refugiados tem-se alimentado não só de ideias distorcidas sobre o Islão, o Médio Oriente e a natureza dos movimentos migratórios, mas também sobre a situação socioeconómica na Europa, sobre o nosso modelo de sociedade e valores comuns. Importa pois perceber que habitamos um mundo em que as histórias de todos se entrelaçam... que é dos guetos das grandes cidades europeias que saem muitos apoiantes do Estado Islâmico e que é frequentemente nas margens que germinam os extremismos.

A hipocrisia combate-se com coerência

Importa olhar para as redes de apoio aos refugiados que têm surgido (mais ou menos fomentadas pelo Facebook), não apenas com cinismo, mas como sinais de uma sociedade civil a recusar o argumento maniqueísta e desonesto de que ajudar “os outros” é desajudar “os nossos”. Importa ouvir, em vez dos “crocodilos”, os que têm pugnado continuamente por uma política social e internacional mais justa, por uma valorização das pessoas antes dos mercados, e que hoje tornam a dizer “temos de ser solidários porque a culpa desta crise não é dos miseráveis”. A hipocrisia, parece-me, só se combate com coerência.

Dizia Michel Foucault que “onde há poder, há resistência”. É imperativo resistir aos discursos miserabilistas que nos recomendam a pensar “primeiro nos nossos”. Mas ainda faltam análises que salientem aquilo que nos une — a mim; a um refugiado sírio; a um sem-abrigo grego; a moradores de bairros periféricos de Lisboa, Amesterdão ou Copenhaga; aquilo que nos afasta dos “crocodilos” e dos apologistas de uma Europa-torre de marfim. Não, não basta ser solidário de um ponto de vista moral.

Mas também não basta ser crítico de bancada dos hipócritas. É preciso combater activamente propaganda anti-refugiados e os discursos do ódio, que não só nos diminuem enquanto homens e mulheres, como nos manipulam enquanto cidadãos. Para remar contra a indiferença são precisos remos palpáveis — uma política de asilo comum, uma política externa recta e sem duplos "standards", políticas sociais e de emprego menos precárias — mas são precisas também as palavras (e, arrisco dizer, às vezes as imagens). 

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