A solidão do ditador deposto

Olhar poético sobre a figura de um ditador contemporâneo que é, ao mesmo tempo, a encarnação de todos os ditadores.

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A fábula domina este filme desencantado com as ditaduras mas também com as revoluções DR

Mohsen Makhmalbaf foi, com Kiarostami, um dos nomes centrais na descoberta ocidental do moderno cinema iraniano, entre o final dos anos 80 e o princípio dos 90.

A sua estrela empalideceu um pouco desde então, o que talvez se explique, em parte, pelo enorme atrito da sua relação com as autoridades iranianas. É verdade que, nos últimos tempos, sem se exilar, Kiarostami tem filmado sobretudo no estrangeiro; mas Makhmalbaf exilou-se mesmo, sensivelmente na altura em que Ahmadinejad subiu ao poder no Irão, e é, há uns bons dez anos, no estrangeiro que tem vivido e trabalhado. O Presidente é, nesse sentido, um filme razoavelmente “apátrida”, rodado na Geórgia e com actores georgianos mas com capitais oriundos de vários outros países ocidentais, mas narrativamente insituado, ou situado num pais fictício que lembra várias coisas — por exemplo uma ex-república soviética, como a Geórgia — sem ser exactamente nenhuma. É um filme num registo bem diverso daquela perversidade intrincada, feita de jogos de espelhos entre “realidade” e “ficção”, que marcou o melhor do cinema de Makhmalbaf nos anos 80 e ajudou a definir uma ideia do próprio cinema iraniano. Não que eles — os “jogos de espelhos” — não existam aqui, mas a funcionar a outro nível: o da composição, o das conotações, tudo o que serve para construir, e sugerir, este olhar sobre um ditador apeado num país que está algures entre Hergé, a memória soviética ou pós-soviética, e um pot-pourri de ditaduras “célebres” — de um episódio com sapatos que traz a memória à célebre colecção de Imelda Marcos ao brutal destino de alguém como Muammar Khadafi.

É na verdade a alegoria, ou mais propriamente a fábula, que domina O Presidente, num olhar desencantado sobre as ditaduras (naturalmente) mas também sobre o período em que elas acabam — sendo bastante provável que se trate de um filme inspirado na vaga “democratizante” que varreu boa porção do Norte de África e Médio Oriente (a chamada Primavera Árabe), com consequências, em bastantes casos, desastrosas. Num dos diálogos mais sentenciosos do filme — que ele próprio não é particularmente sentencioso — ouve-se dizer, na sequência final: “Vocês depõem as ditaduras e depois desatam a lutar uns contra os outros”. A referência é óbvia e no fundo exprime o desespero, suavemente exposto, de O Presidente. Que narrativamente consiste na longa demanda de um ex-ditador que, acompanhado do seu pequeno neto, tem de cruzar incógnito o país que governou despoticamente, verificando no terreno os efeitos do despotismo, para chegar ao mar e ao barco que lhe permitiria fugir (o resto da família apanhou um avião). Tem o seu quê de chaplinesco — até na sua melhor cena, logo a abrir, com as “luzes da cidade”, que são mesmo as luzes da cidade e não é metáfora nenhuma —, mas também lembra Iosseliani e as suas farsas histórico-políticas (por razões, cremos, que extravasam a mera circunstância “georgiana” do filme), e não deixa de evocar, no realismo folk de algumas sequências (as reuniões populares, a música), as parábolas de Kusturica, em registo bem menos caótico e bem menos demente. Lembra pouco, curiosamente, a “escola iraniana” que Makhmalbaf ajudou a construir.Mas até isso se acresce à singularidade de um filme que concilia a abstracção (esse olhar sobre um ditador que é “todos os ditadores) com as alusões concretas a situações políticas contemporâneas e complicadas, numa poética que, até pelo descrito, às vezes sofre de demasiada “vagueza” mas se reencontra sempre pela sua fidelidade a uma concepção humanista como hipótese de redenção. E é com o míudo, a dançar em frente ao mar, que ficamos, como se a esperança não pudesse deixar de estar na inocência, ainda “indeterminada”, da infância.
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