O anjo de Carditello desceu sobre Locarno

Bella e Perduta, do italiano Pietro Marcello, uma fábula magistral construída a partir da realidade, é o filme do festival e um dos filmes do ano

Fotogaleria
Bella e Perduta DR
Fotogaleria
Bella e Perduta DR
Fotogaleria
Bella e Perduta DR
Fotogaleria
Te Prometo Anarquía DR
Fotogaleria
Te Prometo Anarquía DR

E, ao quinto dia, um anjo desceu sobre Locarno. Os zunzuns já percorriam as ruas da cidade suíça desde a manhã de sábado, espalhados pelos programadores que tinham estado numa projecção reservada à indústria - havia quem lhe chamasse desde já um dos filmes do ano. Mostrado à imprensa na manhã de domingo, apenas poucas horas antes da primeira sessão pública oficial, a sala cheia do Kursaal irrompeu em palmas, e a casa cheia da conferência de imprensa também não engana ninguém.

É bem feito para não termos a tentação de falar antes do tempo: sábado queixávamo-nos que o primeiro terço do festival estava a ser decepcionante, com o concurso a percorrer-se sem grande entusiasmo (à excepção do James White de Josh Mond) e de repente aparece-nos isto. "Isto" chama-se Bella e Perduta, isto é a segunda longa-metragem do italiano Pietro Marcello, cujo híbrido ficção/documentário de 2009 La Bocca del Lupo foi um dos filmes mais aclamados do circuito de festivais 2009/2010 (vimo-lo a concurso no IndieLisboa). E isto é (vamos ousar dizê-lo? vamos.) uma obra-prima absoluta.

É, também, nas palavras da sua co-produtora e montadora Sara Fgaier na conferência de imprensa (que acabou por ficar infelizmente demasiado presa a questões de identidade do cinema italiano), um filme que mudou de pele várias vezes, que começou como uma coisa e acabou como outra, e que o co-argumentista Maurizio Braucci definiu como "descoberto no processo de rodagem e criação". Na sua origem está a história verídica de Tommaso Cestrone, "o anjo de Cardinello", um camponês da região napolitana que, ao longo de dois anos, procurou salvar o palácio rural de Cardinello da ruína e do desinteresse, em regime de voluntariado e às suas próprias custas, contra os interesses estabelecidos e até contra a intimidação da Camorra. Marcello estava a filmar o camponês, o palácio, a região - mas, no dia de Natal de 2013, Cestrone morreu de enfarte, aos 48 anos de idade. 

O grandioso e abandonado palácio dos Bourbon de Nápoles é, ainda, o centro geográfico do filme que Marcello, Braucci e Fgaier construiram no tempo entretanto decorrido  - o título, Bella e Perduta, "belo e perdido", refere-se ao palácio - mas que se metamorfoseou noutra coisa, que cresceu a partir de sugestões e ideias descobertas no material rodado em Cardinello. À história de Tommaso Cestrone como guardião do tesouro, defendendo uma propriedade quase em modo de serviço público que ninguém compreende, vem-se juntar a fábula de um Polichinelo que desce à terra para salvaguardar a sua memória, na forma de uma cria de búfalo abandonada que o guardador recolhera. 

E o filme transfigura-se. Acolhe ecos da Commedia dell'Arte, das tradições rurais, das fábulas de La Fontaine, da comédia italiana, do neo-realismo, do Pinóquio de Monicelli, de Robert Bresson. (É impossível não pensar em Au Hasard Balthazar, e Marcello não enjeita a comparação mas sublinha a enorme diferença entre os dois filmes.)  O bufalozinho, a única herança física que Cestrone deixou em Cardinello a que se chamou Sarchiapone, conta a sua história em off, com a voz de Elio Germano, enquanto o Polichinelo que o guia, espécie de "ligação" com o mundo do além, se deixa seduzir pelas paisagens e pelas pessoas da Campania esquecida e abandonada pelo mundo. "É impossível seguir-te para a realidade," diz às tantas Sarchiapone, "porque os sonhos e as fábulas têm de contar a verdade". 

E aos poucos, com uma simplicidade apenas aparente, Bella e Perduta torna-se numa fábula comovente sobre o que significa guardar, preservar, manter vivo: não apenas uma memória, mas toda uma cultura, uma ligação ao mundo e à história. Um filme abertamente, assumidamente, profundamente italiano, que se instala de corpo feito no território de que fala, mas que não é um filme "à antiga italiana" - é, na sua inscrição no "Oeste selvagem" dos "cinemas do real", um dos objectos mais contemporâneos e desafiadores de regras que vemos em muito tempo. 

É uma pastoral que não recusa a modernidade - haverá mais moderno do que um filme que literalmente se marimba para as fronteiras entre o documentário e a ficção? - mas que reivindica a urgência de uma ligação e uma compreensão da natureza para manter viva a chama do humano. Como quem diz que a arte nada significa sem a abertura ao mundo - "amar a vida é a única coisa que conta", diz-se às tantas. Não é só o palácio de Cardinello que é "belo e perdido", somos também nós, parece dizer Pietro Marcello. E nesse processo comove-nos como há muito tempo não nos comovíamos.

Skate punk e vampiros gay

Bella e Perduta criou o acontecimento no concurso de Locarno, é verdade, mas um outro sinal de que a competição está a começar a ganhar embalo partilhou o dia de domingo. Se o filme de Pietro Marcello é uma pastoral delicada, Te Prometo Anarquía, quinta longa-metragem do mexicano Julio Hernández Cordón, é uma barra de dinamite atirada de surpresa, um segurança de discoteca que nos agarra pelo colarinho e nos atira para a rua sem apelo nem agravo. 

Aí aos 15 minutos de filme, quando uma personagem empurra num skate um miúdo que desmaiou, alguém atira a frase "Foste buscar esse puto aos Olvidados ou agora vêm de oferta quando compras um skate novo?" A referência ao clássico de Buñuel sobre os miúdos de rua mexicanos pode ser provocação ou petulância; no caso de Hernández Cordón é um aviso que o que aí vem não é o miserabilismo latino do costume.  

E não é: a hora e meia que se segue está permanentemente a deixar o espectador em contra-pé, convencido que já percebeu o que se está a passar para ser surpreendido logo a seguir. Rodado com um elenco de não-profissionais e skaters que Hernández Cordón deixou à vontade para improvisar os diálogos dentro das situações definidas pelo guião, Te Prometo Anarquía é: ménage à trois bisexual; crónica da adolescência skate-punk; versão mexicana do Kids de Larry Clark; filme de vampiros urbano; melodrama da desigualdade social; thriller do narco-tráfico; drama da emigração. Tudo ao mesmo tempo e alternadamente na sua história de um adolescente burguês que gere um negócio clandestino de venda de sangue a hospitais e da sua paixão não correspondida pelo filho irresponsável da empregada. 

Este não é o México "assimilado" por Hollywood da geração Cuarón/Del Toro/Iñárritu, antes o México mal-disposto e insolente dos Güeros de Alonso Ruizpalacios, intenso, inesperado e provocador. Uma descoberta. 

Sugerir correcção
Comentar