Encontros, reencontros, surpresas, repetições

Foi admirável o reencontro entre Herbie Hancock e Chick Corea, dois virtuoses com mais de 60 anos de experiência de palco mas que mantêm uma vitalidade e uma destreza impressionantes.

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Mário Pires
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Mário Pires

O 12º Festival EDPCoolJazz iniciou-se com um dueto, protagonizado por dois dos mais extraordinários pianistas de jazz da actualidade.

Antes, porém, que eles pudessem começar o espectáculo, a organização, tendo afunilado em demasia o acesso aos lugares sentados, teve dificuldade em dar vazão às longas filas de público, do que resultaram protestos vários e um atraso de meia hora. Os jardins do palácio do Marquês de Pombal são um local magnífico para um evento deste tipo, e foi bem aproveitado. No entanto, para além das condições de acesso à plateia, devia também considerar-se a possibilidade de montar estrados ou bancadas a meio da actual plateia B ou, em alternativa, reforçar o sistema de amplificação de som, pois este chega muito atenuado às filas mais recuadas, ouvindo-se por vezes ao mesmo nível do coaxar das rãs na ribeira adjacente e com riqueza tímbrica equivalente; quem ficou de pé, mais próximo do palco, pôde ouvir muito melhor.

Dito isto, o que se ouviu foi um reencontro admirável entre virtuoses com mais de 60 anos de experiência de palco, mas que mantêm uma vitalidade e uma destreza impressionantes. Herbie Hancock e Chick Corea tocaram juntos com Miles Davis, e em 1978 fizeram uma tournée em duo, que ficou registada em duplo álbum. Há dois anos decidiram repetir a experiência, e já em 2015 programaram uma série de concertos com o mesmo formato, que entremearam no denso calendário artístico de cada um.

Neste contexto, há necessariamente um guião musical, com largo recurso à memória partilhada - o grau de improvisação efectiva é frequentemente mais reduzido do que se imagina. O concerto começou, de facto, com uma improvisação ao teclado do sintetizador, por Hancock, à qual Corea ia respondendo de forma tacteante. A convergência tornou-se audível só no final dessa introdução. Seguidamente Corea deu o tom estilisticamente exploratório que lhe é próprio, começando com sonoridades quase atonais, mas divergindo depois, bem secundado por Hancock, para um território mais ecléctico. À terceira, e com uso exclusivo dos pianos acústicos, o duo levantou finalmente voo, com ritmos densamente entrecortados e rica paleta harmónica povoada por gestos rápidos e precisos, empolgantes.

Os sintetizadores regressaram depois: Hancock sempre foi um fã da electrónica, mas Corea não lhe ficou atrás na procura de sonoridades imprevistas. Houve coerência na construção da imagem sonora, mas esta não se impôs pelo especial interesse, e o duo acabou por se voltar para um tema variado de forma mais clássica, ao piano. Seguiu-se um tributo a Miles Davis, muito saudado pelo público.

Em coerência com essa memória e também com as predilecções de Chick Corea, foi depois proposto um ostinato baseado na escala andaluza, sobre o qual os protagonistas tiveram oportunidade de fazer fogo de artifício digital, combinado com invejável riqueza de coloração harmónica e surpresa rítmica. Neste ponto a energia do duo teve uma quebra: Chick Corea, no sintetizador, arrastou-se de forma inconsequente, recuperando só muito progressivamente alguma animação. Restava acabar a festa com um êxito seguro: Spain, baseado no célebre Adagio de Joaquín Rodrigo, onde os pianistas introduziram o público como terceiro vector sonoro, treinando-o no canto de um acorde de si bemol menor, e na repetição de frases musicais (no que o público revelou boa receptividade e melhor ouvido). Não foi a primeira vez que Corea e Hancock recorreram a este modelo de participação, mas o resultado foi excelente.

O concerto terminou com dois encores aventurosos, o primeiro dos quais puramente acústico, revelando uma energia criativa e um entrosamento técnico-artístico verdadeiramente excepcionais, para mais vindos de artistas com 74 e 75 anos de idade...

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