No jardim de Sofia

Sofia Gubaidulina contribuiu com a mais longa e saliente obra deste disco.

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Sofia Gubaidulina contribuiu com a mais longa e saliente obra deste disco DR

Três obras, três intérpretes, três vozes. O ponto de partida desde belo disco é a Sonata para Flauta, Viola e Harpa de Claude Debussy (1915), uma das derradeiras obras do autor.

Como se sabe, Debussy tinha o projecto de escrita de seis sonatas, para diferentes combinações instrumentais, das quais apenas a primeira, para violoncelo e piano, e a terceira, para violino e piano, prosseguiam no seu instrumentarium práticas já estabelecidas, enquanto a Sonata para Flauta, Viola e Harpa, bem como as outras três, projectadas mas não concretizadas, para oboé, trompa e cravo, para trompete, clarinete, fagote e piano, e para “diversos instrumentos” incluindo contrabaixo, tinham combinações originais, mesmo inéditas. Nesse sentido, aquela que de facto foi escrita, a Sonata para Flauta, Viola e Harpa, exerceu um perene fascínio, a combinação tendo vindo a ser prosseguida por diversos compositores, incluindo Toru Takemitsu em And then I Knew ‘twas Wind (1992) e Sofia Gubaidulina em Garten von Freuden und Traurigkeiten/Jardim de Alegrias e Lamentos (1980), as duas outras obras deste disco.

Haverá sempre que ter presente que, pela liberdade formal e pelo movimento interno das suas obras (liberdade formal mesmo quando retomando referências canónicas), pelas texturas harmónicas e pelo uso de modos que definiram uma nova concepção tonal, Debussy foi um dos maiores renovadores da história da música europeia — e o Prelúdio à Sesta de um Fauno, de 1894, é de facto a obra inaugural da música do século XX. Igualmente há que recordar que a influência do gamelão de Java, ouvido na Exposição Universal de Paris de 1889, foi outro gesto inaugural, a prazo de enormes consequências: no século XX (e no XXI), não mais a música erudita da tradição europeia seria exclusivamente europeia, surgidos que estavam novos espaços, como a América e depois o Extremo Oriente.

O japonês Toru Takemitsu sempre teve Debussy como a referência maior, mesmo que colhendo também influências no compositor que entre todos é representativo do diálogo Oriente-Ocidente, Messiaen, no ascetismo musical de Webern ou em Cage. Depois de um período inicial em que, querendo firmemente integrar-se na “vanguarda” europeia, recusou as músicas tradicionais, Takemitsu viria a interessar-se por ela num curioso movimento de influência de Cage. Isto é, foi o mais “oriental” — em termos de concepção filosófica — dos compositores “ocidentais” que esteve na origem de uma reaproximação às músicas tradicionais por parte de quem era o mais “ocidental” dos compositores orientais, Takemitsu. Não só nalguns casos introduziu instrumentos tradicionais japoneses, como em 1972 a experiência do gamelão (é caso para dizer, o gamelão outra vez!) em Bali lhe foi marcante. Sobretudo, Takemitsu foi um admirável construtor de paisagens sonoras, de resto muitas vezes sugerindo uma imagética concreta — jardim, chuva, água ou vento —, como na obra neste disco, And then I Knew ‘twas Wind; e as suas composições têm uma admirável capacidade evocativa, como é o caso.

Curiosamente, “jardim” é termo que figura também no título da obra de Gubaidulina, uma das figuras máximas da música do presente. E é um título colhido num poema de um autor russo sobre essa figura lendária da cultura arménia, o poeta e cantor Sayat Nova, objecto do extraordinário filme de Sergei Paradjanov. Há que não esquecer que, sendo de nacionalidade russa, Gubaidulina é de origem tártara, dado cultural não por certo indiferente a que, se na sua produção sobressaem magníficas obras de referência cristã, como Offertarium ou O Cântico do Sol, haja por vezes derivas exógenas, como em certas escolhas instrumentais ou na construção deste Jardim de Alegrias e Lamentos, que de resto, embora por modos muito diferentes dos de Takemitsu, é uma paisagem sonora a partir dessa imagem do “jardim” — e afinal a mais longa e saliente obra deste disco, que, reunindo obras muito díspares, tem uma inegável e bastante original proposta programática.

Este tipo de intérpretes reúne-se, pelo menos em termos de “valores de produção”, em torno da notoriedade da violetista Kim Kahkashian (que, recorde-se, é americana mas de origem arménia). Curiosamente, sem com isto sugerir que a viola desempenha um papel secundário, nas obras de Debussy e Takemitsu são de imediato os evocativos timbres da flauta e da harpa que se destacam, só na obra de Gubaidulina havendo intricadas texturas entre os três instrumentos.

Uma certa falta de fluência no primeiro andamento da Sonata de Debussy, e sobretudo (questão de produção também) uma saliência da flauta que faz esse andamento aparentar-se a uma versão de câmara do Prelúdio à Sesta de um Fauno são as reservas que se podem apontar. Mas este é um disco de rara capacidade evocativa e Jardim de Alegrias e Lamentos é uma importante adição à vasta discografia de Gubaidulina. 

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