O mundo ouve-se em Sines e este ano soa a vudu

Arranca esta sexta-feira o Festival Músicas do Mundo, em Sines e Porto Covo, num cartaz em que se destacam Salif Keita, Ana Tijoux ou Vaudou Game, projecto de um James Brown togolês que quer limpar a reputação da cultura vudu.

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Vaudou Game é o nome do projecto criado por Peter Solo em 2012 DR

Quando o Festival Músicas do Mundo (FMM) arrancou em 1999, o mundo parecia estender-se apenas até França – de onde vinha o sírio Abed Azrié –, com a presença do jazzman Sonny Fortune a parecer sobretudo uma tentativa de acrescentar quilometragem à ambição do cartaz.

Mais de metade da edição ficava então a cargo de artistas portugueses e seria de pouco espanto que a iniciativa da Câmara de Sines de inventar mais um festival (numa altura em que cada autarquia descobrira neste formato uma forma de promoção local quase sempre sem critério) perdesse o viço e desaparecesse em meia-dúzia de anos. Em vez disso, o FMM foi crescendo graças a uma programação conhecedora e que apostou repetidamente em fazer de Sines um porto com espantosa capacidade de empreender curtas viagens por todo o mundo à boleia da música.

Em 2015, na sua 17ª edição, a decorrer entre 17 e 25 de Julho e com perto de 50 concertos espalhados por Porto Covo e Sines, o FMM parece ter estabilizado numa audiência entre os 80 mil e os 100 mil espectadores, figura repetidamente nas escolhas da revista especializada Songlines como um dos 25 festivais de world music mais importantes do calendário internacional e consegue a proeza de a estreia do histórico maliano Salif Keita constituir já uma raridade no domínio das lendas da música africana que nunca pisaram o palco do festival. A programação arranca esta sexta-feira, em Porto Covo, com concertos de Janita Salomé, Forabandit (Occitânia / Turquia / Líbano) e Esko Järvelä Epic Male Band (Finlândia), transferindo-se na segunda-feira para Sines.

A tónica na descoberta tem sido, na verdade, uma constante e uma das razões da implantação do FMM como evento maior da world music em Portugal na Europa. Se o regresso de Toumani Diabaté (sábado, 25, em duo com o filho Sidiki), dos Yat-Kha (banda da região de Tuva, um dos primeiros nomes de culto no circuito das músicas do mundo, 25), do indiano Niladri Kumar (24) ou do nigeriano Del Sosimi (22) aprofundam a ligação já estabelecida com estes nomes de primeira linha, nos próximos dias vamos assistir a actuações há muito aguardadas de Orlando Julius (25) e do Canzoniere Grecanico Salentino (24), mas igualmente a alguns dos mais importantes fenómenos recentes da world music, casos da rapper chilena Ana Tijoux, dos rockers malianos Songhoy Blues e do funk togolês de Vaudou Game (todos na quinta-feira, 23).

Cantar a cultura vudu
Vaudou Game é o nome do projecto criado por Peter Solo em 2012, depois de emigrado para Lyon, França, e percebido que a sua cultura de origem, vudu (vaudou), gozava de uma péssima reputação na Europa. “O vudu aqui é visto como algo de diabólico, de maléfico, de satânico”, queixa-se em entrevista ao PÚBLICO. “Mas o vudu não é isso. O vudu é amor, é paz, é a harmonia com a Natureza. Essa coisa maléfica foi inventada pelos filmes de Hollywood. E foi por isso que fiz este projecto, para tentar colocar as coisas no sítio. Deixei o Togo para mostrar a minha cultura a todo o mundo.”

“Todas essas coisas dos sacrifícios, de matar galos e assim, servem apenas para honrar a natureza”, explica. Os rituais e as cerimónias realizados na sua região do Togo têm, segundo o músico, a intenção única de agradecer à Natureza o facto de esta providenciar os alimentos e os recursos necessários à sobrevivência humana. É isso que Peter Solo canta nos temas de Apiafo, primeiro álbum do colectivo Vaudou Game, e foi essa mesma explicação que precisou de prestar aos músicos franceses que arregimentou para interpretar a sua música, baseada na tradição dos cânticos das cerimónias vudu.

Vaudou Game não se esgota, no entanto, na interpretação dessa tradição. Em cada um dos temas de Apiafo é impossível não ouvir Solo cantar como se tivesse sido possuído por James Brown. “James Brown tem uma energia que se parece à energia do vudu”, compara Solo. “Ele entra em transe com a sua música e esse transe do funk é tal e qual aquele que vejo na minha terra.” É esse transe magnético que ouvimos, por exemplo, no single Pas Contente, em que Peter Solo dá voz a um descontentamento que, confessa, não é propriamente o seu. “É o vudu que não está contente, é a Natureza que não está contente com a maneira como os humanos a tratam, a destroem, a consomem hoje em dia. E creio que um dia vai demonstrar isso mesmo, esse seu grande descontentamento.”

Até lá, Peter Solo continuará a cantar como forma de divulgar o verdadeiro vudu e, pelo meio, cumprirá os seus próprios rituais para não provocar ainda mais a ira da terra.

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