Quatro gerações de músicos a olhar para a cidade do Milhões de Festa

Se olharmos com atenção, a pacatez minhota de Barcelos revela uma genealogia de bandas que vale a pena conhecer ou redescobrir — só não lhe chamem “cena”. Combinação de concertos, turismo gastronómico e catarse colectiva, o Milhões de Festa é o festival que faz a síntese de várias gerações de bandas barcelenses. E que só tem um momento triste: o da despedida

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Barcelos é, de há uns anos para cá, o improvável epicentro de um festival de Verão que prima pela variedade de propostas e de público. Um evento, à beira rio plantado, que é um micro-universo mitológico dentro de uma cidade que se habituou a viver de outras lendas, como a do galo ou a das cruzes. São três dias a saltar entre a piscina e o asfalto ou relva dos palcos (um dos quais serve rojões), a descobrir bandas de todos os continentes e iguarias regionais. E é assim desde 2010, graças à bonomia da promotora Lovers & Lollypops (LL) e do seu comodoro, Joaquim Durães (ou Fua).

Foi em Barcelos que várias gerações de músicos se formaram, gerando um número incontável de bandas e um movimento informal a que se convencionou chamar “cena de Barcelos”. A imagem romântica de miúdos imberbes a ensaiar em garagens poeirentas numa marcha furiosa contra o tédio colou-se à cidade. E de lá saíram bandas como La La La Ressonance, Green Machine, The Glockenwise ou Killimanjaro — e dezenas de outras, não raras as vezes partilhando membros entre si.

Cada uma dessas quatro bandas representa, à sua maneira, uma geração de músicos de Barcelos, mas as diferenças nunca poderiam ser só etárias: traçado o mapa cronológico, importa perceber que cada grupo se relaciona com outras bandas e com a própria cidade de forma distinta. E que esse relacionamento foi-se descomplicando à medida que cada geração foi passando a tocha à seguinte.




Depressão urbana

André Simão, 38 anos, é um dos patriarcas da cena musical de Barcelos graças aos La La La Ressonance e, antes ainda, aos The Astonishing Urbana Fall. O arquitecto e músico, que também tem os Dear Telephone e que dá ainda uma perna em White Haus, PZ e Duquesa, recorda que, quando começou, “havia uma certa separação de gerações, os músicos não se intersectavam muito”. Mas que o fosso geracional foi-se dissipando “muito graças à dinâmica da LL de promover encontros e concertos”. Prova disso mesmo é o facto de André participar no EP de Duquesa, a estreia a solo de Nuno Rodrigues (The Glockenwise). “As coisas agora estão mais próximas, começa a caminhar para a amizade café”, resume.

“Sempre achei que era um disparate chamar a isto ‘cena’ porque não há um fenómeno em que haja uma correspondência entre o que se faz, quem faz e quem consome”, continua , “em Barcelos só existem gajos que tocam”, embora o Milhões seja “a expressão mais evidente do que poderia ser” essa cena.

O multi-instrumentista toca, ininterruptamente, no Milhões de Festa desde 2011 e este ano, além de estrear um projecto novo — TAO, com Filipe Azevedo dos Sensible Soccers e VT dos Equations —, repete as honras de abertura do festival, como em 2014. Mais do que um concerto, “é um encontro cósmico improvisado” entre vários músicos de Barcelos ou, como André lhe chama, “um ensemble inter-geracional”. Antes disso, em 2013, já os La La La Ressonance haviam subido ao palco com os Black Bombaim, num daqueles momentos que encapsulam um festival e o seu programa. “Esse concerto, e o disco que gravámos juntos, tem muito que ver com a postura de risco do Milhões”, conclui.

Actualmente, João Pimenta, 33 anos, tem uma loja vintage (“podes pôr que sou empresário”), mas em palco é o baterista dos 10 000 Russos — antes esteve nos ALTO!, nos Botswana e nos Green Machine (que deram o seu último concerto precisamente no Milhões), embora “nunca tenha pensado em ter uma banda”. Quando começou a tocar “era tudo muito diferente”. E explica porquê: “Nos anos 90, o Milhões seria impossível. A câmara era fossilizada, estavam colados às cadeiras” e, musicalmente, “as bandas eram um bocado anti-rock”. Os Glockenwise nessa altura “seriam gozados” porque Barcelos estava, por culpa da influência britânica, a curtir “uma onda urbano-depressiva”. "Riffs", solos de guitarra e pedais de distorção eram vistos como “uma anedota”, até que “a nova geração começou a mudar esses fundamentalismos”.

“Barcelos era e é conservadora” — “por alguma razão eu sai de lá” —, mas a verdade é que produziu dezenas de bandas. Como foi isso possível? “A cidade não tem assim tão poucas pessoas como se imagina. Barcelos em si tem uns 10 ou 12 mil habitantes, mas o concelho tem 89 freguesias, são 140 mil habitantes”. A organização territorial dá razão a João: Barcelos é a sede de concelho com maior número de freguesias do país. Antes, “só havia duas hipóteses: ou tinhas uma banda e passavas o Verão inteiro a ensaiar sem perspectiva nenhuma de dar concertos” ou “jogavas futebol no Gil Vicente ou hóquei no Óquei de Barcelos”.

As melhores recordações do Milhões que guarda são as da edição de 2007, em Braga, embora não tenha ido tocar ao Censura Prévia. “As tomadas começaram a derreter, as paredes estavam literalmente a suar e, basicamente, toda a gente podia ter morrido, o que tornou tudo meio memorável”. Do cartaz de 2015 está curioso para ver Michael Rother — “gosto muito dos Neu!, mas até acho que o baterista, Klaus Dinger, é mais importante” — e, de resto, vai “sem ouvir nada, para ser surpreendido”.

Hereditariedade musical

Com 24 anos (“já terei 25 por altura do Milhões”), Nuno Rodrigues é Duquesa e toca nos Glockenwise, a sua primeira banda, desde os 16. Paralelamente, está a fazer um mestrado em Relações Internacionais. Embora diga, meio a brincar, que “nunca houve, nem haverá, uma cena em Barcelos”, admite que “há um fenómeno qualquer analisável” que talvez se explique pela hereditariedade. “Os nossos irmãos, primos e amigos mais velhos já tocavam. Havia uma vontade de pegar em instrumentos”, mas “não havia uma cena ideológica”, só “vontade de tocar e de nos pormos à andar de Barcelos”.

Nuno, que chegou a morar no mesmo prédio de João Pimenta — “andei com ele ao colo, depois aos 13 anos emprestei-lhe um CD de Turbonegro” —, aponta o paradoxo de “haver menos miúdos com bandas em Barcelos agora do que quando eu comecei a tocar”. Os adolescentes da cidade podem-se ter acomodado, mas “agora é que está criada a estrutura ideal para haver uma cena: se tiveres uma banda e fizeres barulho, as pessoas provavelmente vão compreender mais facilmente”.

Em relação ao festival, acredita que se metamorfoseou pouco. “Há uma ou outra alteração, mas isso deve-se ao facto de ter atraído algumas marcas” e, em relação aos seus conterrâneos mais novos, “há uma certa sensação de entitlement”. Do cartaz de 2015, Nuno, que toca no Milhões todos os anos desde 2010, destaca Michael Rother, THEESatisfaction, Golden Teacher e Tijuana Panthers — “queria muito ter ido ao de Braga, mas estava dependente de boleias, era só um puto adolescente em Barcelos”.

Também músico e estudante, mas numa licenciatura de línguas aplicadas, José Gomes, 20 anos, toca guitarra nos Killimanjaro, a sua primeira banda, e é o delfim desta história. “Fiquei a conhecer a Lovers pelos concertos que eles faziam em Barcelos, depois aparece o Milhões, em 2010, tinha eu uns 15 anos”. Nunca mais deixou de marcar presença. No ano passado, os Killimanjaro editaram “Hook” com o selo LL.

Este ano não vai tocar ao Milhões e, embora só conheça “a maior parte das bandas desde que saiu o cartaz”, gosta de “não estar à espera de nada”. Das que já conhecia antes quer ver Hey Colossus, Drunk in Hell e, claro, Michael Rother dos Neu! (“já está velhinho, mas quero ver o que ele vai fazer”). Se tivesse de descrever o Milhões a alguém, José descreveria como o festival em que “se está sentado na relva ao lado de uns gajos que não sabes quem são e, à noite, esse pessoal está em cima do palco a dar alto concerto”. Foi o que lhe aconteceu, em 2011, com os Causa Sui.

Aquilo que o fez querer entrar na música foi “ver que dar concertos e ter uma banda não era só para estrelas, estava ao alcance das pessoas normais e isso, com 14 anos, foi uma revolução”. Para a epifania contribuiu a idade em que começou a sair à noite, altura em que percebeu que havia pequenos concertos de bandas locais. “Se eles estavam a fazer, eu também conseguia.”

José admite que houve uma altura em que ser de Barcelos era, mais do que outra coisa, um posto. “Íamos tocar a qualquer lado e as pessoas respeitavam a cidade como selo de qualidade”. Mas concorda com Nuno Rodrigues na teoria de que hoje há menos bandas em Barcelos. “É cíclico, houve um boom muito grande, as pessoas notaram, começou a criar-se público, mas depois arrefeceu” — quem estava “em força, passou para outro nível”, os outros deixaram de tocar. “Eu quando comecei tive a sorte de conhecer o Tojo (Black Bombaim) ou o Elídio (do blogue Rocka Rola em Barcelos)”, mas é provável que os miúdos hoje não tenham a mesma sorte porque “desapareceu o contacto com a malta veterana” a partir do momento em que começaram a abrir mais bares e as pessoas se espalharam em vez de estarem sempre, todas, no mesmo.

Continua a haver bandas, claro, e certamente que “continua a haver miúdos a ensaiar em garagens”, mas agora o “movimento está mais calmo”, diz José. Embora Barcelos se tenha especializado em contrariar probabilidades: “Se calhar está tão calmo que volta a subir.”

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