O que queres ser quando fores grande?

Não, não queria ser polícia nem sinaleiro, não queria ser médico ou enfermeiro, estrela do “roque“ ou da televisão, não, não queria o prestígio nem queria a pretensão

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Arko Datta/Reuters

E que grande surpresa a do meu pai ao perceber o filho, na tenra idade de dez anos, declarar em alto e bom som, para que todos pudessem ouvir, querer ser Biólogo. Estávamos em mil novecentos e oitenta e oito, e nos anos oitenta não havia Biólogos. Não. Quanto muito, cientistas, malucos de preferência, armados a cem dioptrias e microscópio à procura de um santo graal ainda hoje por encontrar, coca-bichinhos míopes de nascença prontos a rebentar a casa ao primeiro sinal de uma qualquer eureka ou descoberta, ao melhor estilo dos filmes.

Mas não, meu pai, maluco não era, e cientista, apesar dos óculos garrafais e da cara de parvo, também não, e nem por isso. Não, o que eu queria era ser Biólogo: bichos, pai, animais, mamíferos, e salvar o urso polar, dedicando desde logo toda uma vida no garante de que os teus netos e bisnetos possam, também eles, um dia conhecer, e respeitar, todas as forças da natureza.

E não, não queria ser polícia nem sinaleiro, não queria ser médico ou enfermeiro, estrela do “roque“ ou da televisão, não, não queria o prestígio nem queria a pretensão. O que eu queria era ser o Jacques Costeau a desbravar os mares, ou o David Attenborough e documentar o mundo, sem guitarras, sem carros desportivos ou bolas de futebol, porque estas são as ilusões dos homens, mas nem por isso os sonhos de uma criança.

Queria ser feliz, pai, e, para mim, ser feliz só mesmo no meio dos bichos, dos animais. Por isso, pai, só posso venerar os mil modos através dos quais a paciência e o amor de uma mãe, a minha, abriram de par em par as portas daquela casa a não menos de doze periquitos, criação incluída, um rouxinol, dois peixes, um casal de hamsters, uma cadela e duas ninhadas, bicos de lacre, tartarugas... e três filhos em plena, e contínua, algazarra. Sim, se há mães que são umas santas a minha foi uma mártir, mas ganhou o seu lugar no céu, senão o de todos, pelo menos no meu.

No entanto, e já devia saber, não podia esperar uma centelha de compreensão lá na escola: aqui, falhei, porque ninguém quer salvar o mundo, ou ter consciência para tanto, quando ainda se tem dez anos.

Obviamente, levei porrada. Isso, mais a alcunha: cientista, e maluco: cá está, cientista maluco, ou apenas cientista, para os amigos, até hoje, que é quando visito a escola e a senhora "contínua", agora velha, mas ainda a mesma, reconheço-a, se volta para mim e diz, "olh'ó cientista, o que é que tu queres? A professora Alda não está cá". E eu, que não quero saber da professora Alda, só estou cá de passagem, ao contrário da senhora “contínua“, que nunca saiu daqui, eu que apenas vim ver a escola que fez de mim quem sou hoje, sacudo dos ombros a rispidez das palavras e dos gestos, os quais foram mais que muitos, entre os dez anos de idade e a entrada para a universidade, da parte de quem nunca foi ou pôde ser aquela criança, sentada um dia no topo de uma árvore perdendo os olhos na distância do horizonte, o qual, bem o sabia, haveria de ser seu.

E tu, o que queres ser quando fores grande?

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