E tu, já trabalhaste num call center?

Não, não foram tempos felizes, os tempos passados a pente fino num "call center" de Lisboa: a fome regava-se em lágrimas quando a noite caía e ninguém podia ver, e a raiva, a raiva foi sempre crescente

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Rui Gaudêncio

Já. Já trabalhara num call center. E sim, tivera de mentir para poder trabalhar num "call center", retirando a licenciatura da lista de habilitações: como se, de repente, ser licenciado fosse um crime. E é. E não, não que haja nada de errado quanto a trabalhar num "call center", conquanto os contratos sejam permanentes e os ordenados na casa dos 1.000 euros mensais, pelo menos, como lá fora. Infelizmente, nada podia estar mais longe da verdade: 400 euros por mês a recibos verdes menos 150 para a Segurança Social, por favor, e o resto são os pais a pôr a comida na mesa, e já vais com sorte, porque é preciso pagar uma renda mais o tecto por cima da cabeça.

Trabalhara no contencioso, fazendo de conta ser parte de uma firma de advogados (que fino, ou antes uma maneira um tanto ou quanto sórdida de nos fazer sentir melhor?) responsável por garantir os pagamentos de clientes em falta. Já se adivinha, os insultos faziam parte da "job description", de manhã à noite, de segunda a sábado (porque o domingo é para descansar e o retrocesso civilizacional ainda não deu para tanto), ao levantar e ao deitar, onde o operador pouco mais é para além do saco de boxe onde o cliente despeja todas as frustrações de uma vida, dez horas por dia mais 30 minutos de intervalo para matar a fome, uma ida à casa de banho e a insuficiência renal aos 40 por não poder beber água em quantidade durante a jorna. Felizmente ainda não atingira os 40, e havendo tempo havia esperança.

As chamadas caíam automaticamente sem qualquer controlo do operador. O nome dado era falso. Podia ter-se chamado Carla. Para todos os efeitos, apresentava-se como João Silva, escritório de advogados da doutora Paula Matias (nome fictício), e a paródia desenrolava-se. Os tempos mortos entre chamadas eram ocupados a pensar na vida e nas suas próprias frustrações, com que carga de água chegara ali e como sair. Isto e os anúncios no site da empresa, a única ligação à Internet disponível, anúncios esses cuja cadência mensal era efusivamente celebrada por todos os operadores, uma vez que, durante 40 gloriosos segundos, havia algo de diferente para ver e fazer.

Querendo dali sair (porque esta vida não interessa a ninguém), dedicou os tempos mortos à memorização de todo o manual de procedimentos para, ao fim de três semanas, ser “promovido“, como se agora fosse possível usar tal palavra, para sua surpresa e felicidade. Se por um lado recebia o mesmo (esqueçam lá o ordenado), por outro já não tinha de ser insultado o tempo todo, dedicando parte do dia a circular pela sala, esclarecendo dúvidas a colegas a braços com clientes mais exigentes. Ah, e já agora, ao pescoço já não trazia a reles fita laranja dos operadores, qual admirável mundo novo, mas a fita azul dos coordenadores. "Smile". Infelizmente, não tinha a tal cunha para se aguentar no lugar e, como não era filho de uma das supervisoras, cedo cedeu o lugar ao mesmo a troco dos auriculares e da estação de trabalho à frente do computador e do cliente. Uma vez mais. Num regime onde a meritocracia dependa da vagina da qual saíste, as hipóteses de sobrevivência serão, para todo o sempre, escassas. Daí para a frente foi sempre a cair. Preso a uma vida e a um destino não desejados nem queridos, tudo lhe parecia uma prisão onde, independentemente das voltas dadas, voltava sempre ao mesmo lugar. Isto independentemente do apoio dos colegas, estudantes ou marados de profissão, alguns amantes dos computadores, a maioria com uma preocupante falta de auto-estima e sem outro lugar onde cair morto, excepção feita para os que, por estarem na universidade, ainda acreditarem no Pai Natal.

Não, não foram tempos felizes, os tempos passados a pente fino num "call center" de Lisboa: a fome regava-se em lágrimas quando a noite caía e ninguém podia ver, e a raiva, a raiva foi sempre crescente. Saiu à primeira oportunidade, no sentido de outro emprego, também precário, mas menos ordinário, e onde os insultos não chovem como rãs depois de um tornado: voltou a ser professor, na margem Sul, numa garagem onde se faziam as vezes de um centro de explicações e onde nada, mas mesmo nada, poderia algum dia correr mal.

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