Os Braids floriram com uma lição de Joni Mitchell

Após um álbum que foi um teste à sobrevivência, os Braids regressam com o seu melhor conjunto de canções. Deep in the Iris segue a pista confessional de Joni Mitchell e atira-se a temas como a pornografia ou a mini-saia que é dela e não dos olhares que a seguem.

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Os Braids sobreviveram a uma separação e a um álbum pós-traumático: o novo Deep in the Iris é uma prova de vida DR

Diz-se que não haverá mais pungente autópsia das relações amorosas do que aquela que Joni Mitchell levou a cabo em Blue. Diz-se que por ali se suturam as feridas deixadas por Leonard Cohen e Graham Nash. Diz a própria que Carey se baseia no cozinheiro que a fascinou em Creta quando viu um tipo de barbas ruivas ser projectado por uma pequena explosão para dentro do bar onde se encontrava. Em todo o caso, as dez canções folk-pop de Blue são um prodígio de composição e interpretação, mas um marco sobretudo da instalação de um tom confessional, íntimo e desprotegido na escrita de canções, escarafunchando sem pudor as ruínas sentimentais. Ao ouvir o álbum, o músico Kris Kristofferson terá dito “Oh Joni, guarda alguma coisa para ti!”

Terão sido, no entanto, essa ausência de uma cortina de fumo, e o facto de não se escudar em metáforas elaboradas para ruminar a vida afectiva e de aspergir pormenores autobiográficos reais sobre as canções sem tentar disfarçá-lo, a fazer de Blue, editado em 1971, um clássico instantâneo. Carey, River e, acima de tudo, A case of you, todos gravados com esparsa instrumentação, à porta fechada (Mitchell confessa que rebentava num inconsolável choro se alguém exterior à equipa entrava no estúdio), ouvem-se hoje com o mesmo espanto e o mesmo deslumbramento perante essa majestática torrente emocional. “Ela expõe-se imenso nesse álbum – partilha cada pensamento e cada emoção, e fá-lo de uma forma muito crua, sem pudor”, elogia Raphaelle Standell-Preston, vocalista dos canadianos Braids.

Letting Go Braids

Nenhum dos três elementos do grupo (Raphaelle, Austin Tufts e Taylor Smith) tinha alguma vez ouvido Blue até às vésperas da partida para o Arizona, em direcção ao primeiro de três retiros de que resultou a composição de Deep in the Iris. “É o tipo de álbum que seria expectável que já tivéssemos escutado”, admite a cantora. Mas talvez Blue estivesse guardado para provocar este pequeno cataclismo na música do trio, no momento em que partiam à procura de compor um álbum que se sujeitasse a uma sonoridade crua, menos densa do que no anterior Flourish // Perish, afastada já em definitivo a receita feita de doses iguais de Animal Collective (os arpejos obsessivos e a abusar da reverberação), Björk (os delírios vocais de Standell-Preston) e Jane’s Addiction (os delírios ainda mais extremos de Standell-Preston) que servira Native Speaker. “Os Animal Collective são muito importantes e continuam a ser uma das minhas bandas preferidas”, revela a cantora, “mas acho que nos fomos aproximando mais de outras bandas, como os Radiohead, ao mesmo tempo que encontrávamos uma sonoridade nossa. Nessa altura estávamos sempre a pensar nos Animal Collective”, ri-se.

“Ligámo-nos muito ao álbum da Joni Mitchell porque o ouvimos precisamente antes de partirmos para o Arizona e de começarmos a gravar”, a questão novamente recentrada. “Por isso é que foi tão intenso e deixou uma marca tão profunda naquilo que fizemos.” Mas se os Braids assumiam a procura de uma crueza sonora para o terceiro álbum, essa decisão prévia significava também uma tentativa consciente de contrariar o processo de construção de Flourish // Perish, disco traumático para o grupo e uma chaga aberta entre os três, após o braço-de-ferro entre Raphaelle e a ex-teclista Katie Lee. Depois de Native Speaker, Katie quis ter uma palavra também na criação vocal e lírica. Raphaelle, acossada, recusou ver-se diminuída nas suas funções e a tensão aumentou até ao ponto em que os Braids tiveram de escolher entre tombarem todos juntos ou salvarem-se agarrando nos despojos desse conflito e seguindo caminho a três.

Rebentar a bolha

Acontece que os Braids seguiram caminho como se tivessem uma faca espetada na perna, sabendo que os esperava uma dura prova de resistência. E não andaram pouco, investindo numa esgotante digressão. Ao construírem Flourish // Perish sobre a dolorosa separação de Lee, entregavam-se de forma desesperada a um disco soturno, muito mais assente em programações electrónicas do que antes, enfiando as canções num ambiente por vezes asfixiante, ainda que impecavelmente sedutor. O álbum acabava com um tema grandioso, In kind, como que uma lança atirada para o universo menos carregado de Deep in the Iris. “Adoro esse disco, mas honestamente não gostei nada do processo”, lembra Raphaelle. “Fiquei muito feliz com o que conseguimos fazer, mas éramos uma banda a tentar sobreviver. Foi um disco muito reactivo – queríamos avançar e estávamos cercados das coisas muito difíceis por que tínhamos passado.”

Daí que, após a digressão de Flourish // Perish, Standell-Preston tenha feito por esquecer temporariamente os Braids enquanto se ocupava com o duo Blue Hawaii, partilhado com o ex-namorado Alex ‘Agor’ Cowan. Mais uma vez, fazia-se à estrada com um disco (Untogether) composto em cima de uma separação. Percebe-se assim que os retiros que precederam Deep in the Iris tenham querido dar início a um álbum cauterizando desta vez todas as maleitas, buscando um começo limpo, higiénico, depois de refundadas as amizades a três. “Vamos certificar-nos de que não passamos pelo mesmo outra vez”, estabeleceram como pacto. Quando deram por isso, tinham passado as primeiras duas semanas no Arizona sem tocar uma única nota, apenas a pôr a conversa em dia, a cozinhar, a partir lenha, a reaprender a viver juntos.

“A digressão do Flourish // Perish, em que tínhamos passado todos os dias de um ano juntos, fez que começássemos a distanciar-nos como forma de mantermos algum espaço pessoal”, conta Raphaelle. “Isso é normal nas digressões, em que nos períodos finais vamos criando as nossas próprias bolhas.” Agora era preciso rebentá-las. Até porque a ideia de arriscar um disco com uma forte carga emocional, mais exposto, exigia que os três se sentissem confortáveis nessa nova intimidade.

Um telefonema para os pais

Veio daí a surpresa da cantora quando, ao cantar pela primeira vez a letra de Sore eyes, Austin e Taylor se mostraram altamente desconfortáveis. “Isto é um bocado nojento”, queixaram-se, reagindo à sua dissertação acerca do embaraço de alguém cujo investimento afectivo parece estar consagrado à pornografia – “o sentimento ‘oh meu deus, porque é que fiz isto?’” dos segundos logo a seguir a minimizar a janela, chama-lhe Raphaelle. O problema para os dois homens dos Braids era o de uma incompatibilidade formal – podiam mesmo criar música ancorada na ideia de beleza e ao mesmo tempo querer cantar sobre uma temática tão em conflito com esta premissa? A cantora, que até então nunca se tinha atrevido a passar muito dos seguros conteúdos amorosos, sentiu-se tão frustrada que pegou no telefone, ligou aos pais e desabafou: “Escrevi uma letra excelente sobre estar a ver pornografia e os rapazes não gostam e não querem que a cante.” A resposta do outro lado tranquilizou-a: “Não cedas, Raph, vais ver que eles acabarão por dar o braço a torcer.”

Foi o que aconteceu. Entre aceitarem o desconforto e poderem representá-lo musicalmente ou procurarem uma forma de conseguirem relacionar-se com a letra, Austin e Taylor pouparam Raphaelle, evitando que se martirizasse com a hipótese de ter uma mente tão distorcida que lhe apetecia cantar sobre algo que enojava os seus dois melhores amigos. “Não é que seja uma grande fã de pornografia, mas interessa-me a representação da sexualidade e a representação da mulher. Poder falar abertamente sobre isso parece-me, na verdade, uma coisa de alguma beleza.” Lidar com sentimentos de vergonha ou de culpa era, de facto, mais rico do que voltar a escrever mais uma vez sobre o amor.

A abertura que se deu nesse sentido, de contornar os seus automatismos de escrita, havia de empurrar Raphaelle para a escrita de outra das grandes canções de Deep in the Iris. Miniskirt, a par de Getting tired, Letting go e da soberba Taste, é um dos grandes momentos do álbum, com uma temática novamente invulgar. Sobre a exploração instrumental de uma pop electrónica e aquática que lembra os Múm de Finally We Are No One, vai-se desenrolando a canção de uma mulher que se revolta contra a objectificação de que é alvo e coloca na mira quaisquer Casanovas de pacotilha. “In my little miniskirt/ Think you can have it/ My little mini skirt, it’s mine all mine”. Pelo meio, Raphaelle fala de ser vista como uma galdéria por usar mini-saia ou de não conhecer nenhuma rapariga que não tenha parado de comer a dada altura para se aproximar de um (escanzelado) modelo socialmente imposto do que deve ser o corpo feminino.

“É daquelas canções que se escreveu sozinha”, confessa. “Fiquei até chocada por a letra ser tão óbvia e compreensível. Mas penso que já estava preparada para cantar sobre as minhas frustrações como mulher e não me tinha apercebido de que tinha sentimentos tão fortes sobre a questão. Antes de lançarmos a música estava muito ansiosa, mas assim que se tornou pública fiquei mais descansada e pensei ‘ok, ainda bem que isto saiu’.” À procura da nudez emocional, foi aqui que os Braids desembocaram. E ainda bem – soam melhor na peugada de Joni Mitchell, sem se munirem de pudores.

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