A paródia segundo Gabriel Abrantes

Há aqui uma insolência, chamar-lhe-íamos, que primeiro desconcerta e depois, de um modo geral, tem tendência a exasperar.

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Liberdade: percurso pela Luanda contemporânea DR

Há nos filmes de Gabriel Abrantes uma insolência, chamar-lhe-íamos, que primeiro desconcerta e depois, de um modo geral, tem tendência a exasperar, à medida em que se vai esgotando nela própria – no “gesto”, portanto – sem produzir um “objecto” que valha muito para além dela.

Dito isto, esse balanço entre desconcerto e exasperação é certamente uma zona que Abrantes procura na sua relação com o espectador, ou não trabalhasse, a maior parte dos seus filmes, no espaço entre a paródia e a sátira. A paródia e a sátira dos grandes símbolos nacionais, por exemplo, como acontece em Taprobana, uma reinvenção da saga de um desesperado Camões, tornado herói pátrio malgré lui, num universo que recompõe (ou decompõe) uma parte significativa do imaginário histórico português em cores e modos kitsch e às vezes quase camp, e que ganharia em ser visto como uma espécie de “resposta” ao “Camões” que Leitão de Barros fez nos anos 40, solene apogeu da consagração do autor de Os Lusíadas em herói nacional (e nacionalista). 

Ou a paródia e a sátira da geopolítica contemporânea, em Ennui, Ennui, filme que mistura Rihanna e Barack Obama (numa introdução, aliás, bastante divertida), drones e terroristas, pastores e princesas, e uma mãe e uma filha francesas que ali andam, algures pela Ásia central, a espantar o seu ennui, ennui. A mãe é interpretada pela lendária Edith Scob, e Edith Scob é sempre alguém que vale a pena ver, mesmo quando (é o caso) o interesse do realizador pelas personagens comporta sempre uma vontade de as destruir ou, pelo menos, de corroer a sua psicologia, observação que podia ser estendida ao que Abrantes faz em Ennui, Ennui, um filme que parece querer resistir aos golpes auto-paródicos que o realizador sucessivamente lhe inflige, numa acumulação que sem ser desinteressante (teoricamente, pelo menos), acaba em sobrecarga e em desprendimento (do espectador, pelo menos). 

Não espanta que, deste conjunto de filmes, o mais conseguido seja também o mais contido, e aquele que se leva mais a sério enquanto filme, enquanto olhar sobre as suas personagens e sobre os seus lugares: Liberdade (realizado a quatro mãos com Benjamin Crotty), percurso pela Luanda contemporânea e os seus arrabaldes, embebido do quotidiano, da vida urbana, da arquitectura, dos aspectos sociais, e onde a ironia é fornecida pela realidade ela própria – aquele plano na praia, quando se descobre que o nome do cargueiro encalhado e enferrujado é “Karl Marx”, tem a força de um comentário irónico que se “acha” em vez de se “fabricar”.

 

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