Palmira, 2009

1. No Verão de 2009, fui à Síria de férias. Era um velho plano, eu acumulara livros, imagens, coisa para todo o tempo possível, que era só o mês que tinha de férias na redacção. Não ia em reportagem, mas trouxe dois cadernos escritos, que têm andado comigo, estão na sala em que escrevo agora. Não os abri, este Verão não é o momento.

2. Mesmo de férias, e acompanhada, ao aterrar em Damasco fui desviada para um gabinete da segurança porque era jornalista. Interrogaram-me, uma chatice, funcionários de ditadura, não necessariamente militantes. A diferença em relação à minha primeira chegada a Israel em 2002 foi que a Síria era oficialmente um regime autoritário, e o interrogatório em Israel não foi chato, teria sido traumatizante se me tivesse dado para isso (queriam). Não estou a dizer que a Síria não era um regime autoritário, capaz de interrogatórios piores. Estou a dizer que a Síria era um regime autoritário capaz do pior, e que o meu interrogatório foi só chato, primeiro porque eu não interessava para nada, depois porque aquele exército de pequenos funcionários, ao contrário dos israelitas, não parecia ter nenhuma causa, só sobreviver.

3. Eram tantos funcionários que apesar de eu não interessar para nada vigiaram a estadia. Foi o que descobrimos, eu e o amado, em Deir-ez-Zor. Tem sido difícil acreditar neste nome nas notícias, os raptados, decapitados, escravizados. Difícil aceitar que apenas há seis anos estivéssemos lá. Ia-se à Síria há seis anos, cinco anos, quatro anos. Há seis anos em Deir-ez-Zor, onde agora se morre por nada, eu e o amado vivemos uma cena tipo Charlot com a segurança síria, contei isso numa crónica na altura, quando o burlesco autoritário, a palhaçada daquela vigilância parecia ser o que havia para dizer, por muito tempo, porque tudo ia ser assim durante muito tempo, aqueles registos que tínhamos de fazer ao chegar a uma cidade nova, em livros de contas gigantes, estúpidos longos apelidos portugueses morosamente escritos à mão por um funcionário, que certamente nunca ninguém ia ler. Se algum deles tiver sobrevivido à barbárie desde então, que bom que o amado se lembrou de assinar Aníbal Cavaco Silva.

4. A cena tipo Charlot foi que a gente queria ir ao Eufrates, aos campos agrícolas, ao campo, em suma, queríamos um táxi, e estranhamente, depois de não conseguirmos táxis consecutivos, aparecia sempre um que falava inglês e quase pagava para nos levar. Que conveniente. Onde andará hoje, ainda ao serviço de Assad? Cooptado pelo inimigo? Mas qual deles, entre os milhares que se desdobraram, externos, internos? Vivo, morto, matador, desertor?

5. Depois, também já contei, a segurança não se fez rogada e apareceu directamente quando me meti a fazer uma história sobre os últimos judeus de Damasco, como tentei fazer em várias cidades muçulmanas, desde 2001. Eram meia dúzia os últimos judeus de Damasco, acabei por fazer uma reportagem com eles, acabei por trazer várias reportagens da Síria, como não. Nunca viajei por um país com tantos mundos de pé. Da Suméria aos cruzados, dos primeiros cristãos a pagãos greco-romanos, passando por algumas das mais fabulosas mesquitas do islão, a diversidade é, que eu conheça, insuperável. É-era.

6. Tenho um pano de Damasco por cima da minha cama, bordado por alguém que não cheguei a ver, a mulher do homem que o vendeu, talvez não. Damasco, Alepo, Hama, Mari, Bosra, mosteiros no deserto, castelos, o Eufrates, o Eufrates. Mas não apenas, tudo é-era nada menos do que extraordinário. 

Foto
CHRISTOPHE CHARON/AFP

7. Palmira. Chegámos à tarde. Quisemos dormir numa tenda beduína, junto às ruínas. Foi uma das piores noites de que me lembro, assim em geral no mundo, porque a tenda estava infestada de insondáveis sugadores de sangue, fora que, dos 60 graus que faziam durante o dia, tinham sobrado cerca de 59 lá dentro. Duas, três, quatro da manhã, não dormimos nada. Então levantámo-nos, fomos andar de madrugada pelo que já tínhamos visto de tarde, de noite. Onde andará esse beduíno da tenda infestada, esse malandro do deserto, espero que se tenha pirado para a Turquia, que nestes últimos anos deixou as suas fronteiras bem abertas, porque terá sido. Um dos problemas de Obama, se olhar para os seus aliados, da Arábia Saudita ao Paquistão, é que com aliados destes ninguém precisa de inimigos. Quanto aos inimigos, se eles são (eram?) Rússia, Irão & etc., acabo de voltar do Iraque, e se há coisa que uma pessoa vê é como desta história sírio-iraquiana ninguém, externo ou interno, sai inteiro, embora os de fora estejam sempre bastante mais inteiros.

8. Palmira em 2009, republico o que escrevi ao voltar: “No Verão, com sol alto, Palmira é uma insolação, um chapão de luz. É preciso acordar às cinco, antes do amanhecer, para ir até ao cimo da cidadela e aí ver o sol aparecer, iluminando lentamente as ruínas como se também elas estivessem a aparecer. Vale mesmo a pena ficar uma noite, porque é antes e depois dela que se faz a melhor luz. Petra é um esplendor esculpido na rocha, mas Palmira é o esplendor erguido do nada, em pleno deserto. Nenhuma cidade antiga será ao mesmo tempo tão remota e majestosa. Colunas e templos de um levíssimo dourado, que ao anoitecer há-de parecer rosa, e à noite, iluminado por holofotes, será fantasmático, atravessado pelo rugido de motocicletas. São guias de ocasião e vendedores ambulantes com os braços cheios de colares. De dia enrolam panos árabes à volta da cara, por causa do calor, e enfrentam a concorrência de guias a camelo, à cata de turistas.
Mas está longe de ser como nas pirâmides do Egipto. O viajante pode andar horas em Palmira sem ver ao perto ninguém, sobretudo antes das oito da manhã.
E depois, a partir das nove, abre o templo de Bel, o maior e mais intacto. E a seguir as torres funerárias, onde os nobres e as nobres de Palmira repousavam para sempre, com as suas sedas e os seus toucados. Esta é a cidade da lendária Zenóbia, a rainha que Aureliano levou a Roma como um troféu.”

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