Para precária já basta a saúde

Nunca o mundo teve tanta riqueza absoluta e tanta riqueza per capita. O que tem acontecido, nas últimas décadas, é uma crescente desigualdade na distribuição desse maior rendimento

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Daniel LeClair/Reuters

A condição humana é simples: estamos todos condenados à morte. Uns mais cedo, outros mais tarde. Uns por acidente, outros por doença. Uns na infância e juventude, outros na vida adulta ou na velhice. Uns de morte súbita, outros de doença prolongada. Uns de morte morrida, outros de morte matada. E os que têm a sorte de não morrer cedo, ficam condenados ao lento apodrecimento do corpo, pela degradação progressiva da saúde, que está programada no nosso ADN (sim, no ser humano não há dúvidas de que temos uma obsolescência programada). E todos sabemos isto.

A história da humanidade pode, por isso, ser resumida pela luta incessante contra a precariedade da nossa saúde, da nossa vida. E temos sido bem-sucedidos. Com a ciência, a medicina e os progressos sociais, temos sido capazes de aumentar a esperança média de vida, a longevidade e a qualidade da vida da população mundial.

Esse é, aliás, o verdadeiro propósito do desenvolvimento.

Porém, as últimas décadas têm trazido inflexões no progresso dos países desenvolvidos, muito por culpa de políticas que introduziram retrocessos civilizacionais: ao nível da OMC, que permitem o dumping social e que estão a nivelar por baixo os padrões de desenvolvimento humano (quando o que se tinha que fazer era levar os nossos altos padrões humanos para os países subdesenvolvidos); ao nível da desregulamentação financeira, que enviesa a economia para a especulação, afastando-a dos sectores produtivos e geradores de emprego; e a evasão fiscal, que retira aos Estados a capacidade de sustentar as classes médias e os pobres.

Uma das facetas mais visíveis e impactantes desta inflexão é a precarização do trabalho, que torna a vida muito mais difícil, acrescentando instabilidade social à natural instabilidade da vida.

As leis laborais, os direitos dos trabalhadores, o direito a férias pagas, fins-de-semana, subsídios de doença e de desemprego, horários máximos de trabalho, salários mínimos, pensões de reforma, são tudo construções sociais que permitiram que os países ocidentais se tornassem em verdadeiras civilizações (e locais de maior felicidade), onde a precariedade da vida se mitigava através das teias sociais de segurança que conferiam uma maior estabilidade à vida.

Hoje, a voz do dono diz que não há dinheiro, que todas essas seguranças são insustentáveis. Mentira!

Nunca o mundo teve tanta riqueza absoluta e tanta riqueza per capita. O que tem acontecido, nas últimas décadas, é uma crescente desigualdade na distribuição desse maior rendimento. E só por isso se periga a sustentabilidade da tecnologia social de partilha de riscos que desenvolvemos durante o séc. XX.

Teoricamente, é muito fácil resolver este problema. Basta voltar a fortalecer os direitos laborais e a taxar devidamente os 1% mais ricos do mundo (libertando recursos para as classes médias e para o pobres).

Na prática, é muito difícil devido ao poder instalado que esse 1% tem no mundo: na OMC, nos meios de comunicação social e em todas as organizações governamentais e militares.

Porém, um facto é insofismável: 1% é, sempre, apenas 1%. Quando os 99% da população mundial se dignarem a enfrentar os interesses desse 1% e a não permitirem que se consolide a estupidez do retrocesso civilizacional, não haverá força capaz de os travar. De que estamos à espera?

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