Em São Pedro da Cova, como em 22 de Maio de 1975

Vila celebra esta sexta-feira e sábado a ocupação dos escritórios da antiga mina de carvão, em pleno Verão Quente.

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Plenário no campo de futebol, nos dias seguintes à ocupação DR

Quando esta noite subir ao palco da Junta de São Pedro da Cova, José Suzano reviverá um 22 de Maio de 1975 que lhe ficou marcado na memória. Tão marcado que ele tem dúvidas em descrever como improviso o seu monólogo – ou diálogo com o público –, uma das iniciativas com que a freguesia mineira celebra o dia em que a população ocupou os escritórios da Companhia das Minas para criar, 24 horas depois, o Centro Revolucionário Mineiro.

São Pedro da Cova, terra rica em carvão, foi nesses anos de Período Revolucionário Em Curso (PREC), e em pleno Verão Quente, um filão para as utopias. As pessoas acreditaram. Juntaram-se, aos milhares. “Hoje uma manifestação grandiosa juntaria 300 pessoas, deplora Pedro Fernando. Num concerto de 1977, em pleno complexo mineiro, Zé Mário Branco quase gritava aquele refrão da música identitária “Era a mina era a mina”. Mas num tempo verbal desajustado. Em São Pedro da Cova a mina, que fechara em 70 e que fora ocupada em 75, nunca deixou de ser. É.

Se há terras que se definem, no presente, pela sua história, esta é uma delas. E, por isso, esta sexta-feira São Pedro da Cova regressa ao Verão Quente com vontade de o actualizar, e José Suzano, antigo membro do Grupo de Teatro Círculo, formado ainda na década de 60, sabe já muito do que logo há-de dizer. Mas não sabe como vai ficar no fim. “Depende da coça que levar”, do público, de si próprio, neste exercício de agitação de consciências, de homenagem a gente que lhe diz muito. Nunca esquecerei uma carta que li, naqueles dias, de um mineiro ao médico da companhia, em que ele pedia desculpa por ter estado doente. E estamos quase a regressar a esse estado de subserviência”, critica.   

A vida de muitos saopedrenses tinha mudado uns anos antes, e a profundeza da terra deixara de ser o quotidiano. Faltava emprego…“Em Maio de 70, o patrão faz o que quer/ fecha a mina e não contente/ ainda exige um aluguer…Há ladrão d’uma figa”, cantava Zé Mário naquele concerto de 77. Naquele outro Maio, o de 75, muitos dos que se juntaram para tomar os escritórios da mina não eram sequer mineiros, mas sabiam, por experiência familiar, pelos amigos, pelos vizinhos, numa terra de 14 mil habitantes em que todos se conheciam, o estado em que viviam os antigos funcionários da companhia.

As casas estavam decrépitas, sem obras de reparação. As doenças impediam muitos de fugir dali. E os que se mobilizaram quiseram, “sem vingança”, “por solidariedade”, ajudar a mudar a vida deles, explica Pedro Fernando. Daniel Vieira, presidente da Junta, comunista numa terra que o PCP ajudou a politizar, ao longo de décadas de clandestinidade, descendente de mineiros, prepara-se para viver dois dias intensos. Sobrinho de um dos intervenientes daquele processo – José Teixeira das Neves, presidente da primeira comissão administrativa da freguesia – o autarca queixa-se…dos seus 29 anos. “Adorava ter vivido aquele período”, deixa cair numa curta conversa.

A Junta tem lutado, desde sempre, pela preservação do património mineiro. Curiosamente, essa era já uma das motivações dos ocupantes de Maio de 75, impelidos por uma consciência de que o sofrimento e a miséria poderiam ser ultrapassados mas não esquecidos. “É extremamente importante manter esta memória. Os ideais de quase todos nós continuam a ser os mesmos: a revolução social, o poder popular”, assume Pedro Fernando, que vê na cultura uma forma de respeitar aquele legado. Ele que nasceu na rua da mina, mas já num tempo em que os filhos de mineiros já não estavam obrigados a serem mineiros, como antes acontecia sob pena de terem de abandonar as casas da companhia.

Milhares envolveram-se naqueles dias. De toda a esquerda, gente sem partido. “Hoje quando se fala do PREC, fala-se essencialmente dos exageros, dos aspectos negativos. Aqui assistimos a um processo genuíno, extremamente participado e envolvente. E que nos marcou, mesmo que grande parte dos objectivos não tenham sido cumpridos”, nota Daniel Vieira, fazendo um contraponto com o “amorfismo e a indiferença” que nota na sociedade actual. Esta em que as pessoas preferem “o conforto da casa, o futebol e a TV com 120 canais”, acrescenta Pedro Fernando.

Eles recusam esquecer. Esta noite um coro de professores voltará a cantar o refrão de Era a Mina. E será com música, com teatro, com uma a exposição no Museu Mineiro, pré-inaugurada à tarde, e com abertura ao público no sábado, que pretendem manter viva a identidade local. Até porque sabem que as próximas gerações dificilmente compreenderão a brutalidade a que foram submetidos milhares de sampedrenses, e que pode ser revisitada nos testemunhos recolhidos pela revista 2, do PÚBLICO, de 29 de Março. Nessa edição, Manuel Reis, 89 anos de idade e quase 20 de mina sintetizava, desta forma, aquela vida: “Mesmo que houvesse um filme, esta mocidade não acreditava. Era realmente horrível.”

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