Onde pára o cartão de cidadão do senhor Mota?

Gasta-se o tempo livre a aturar a incompetência e a sua irmã gémea, a burocracia.

Aos 92 anos, move-se com ligeireza. Olhinhos azuis, brilhantes e inquietos, escondidos no fundo de muitas rugas que lhe tomaram o rosto. Filosofa e especula sobre tudo. A vida que está o que está. O futuro ainda longo com projectos.

Há umas semanas, bebia o café da manhã e lia o jornal, abordou-me. Se podia sentar-se à minha mesa. Sentou-se antes da resposta. Directo ao assunto. "O sr. doutor, que conhece tanta gente, não conhece 'alguém' na Loja do Cidadão?"

Tinha perdido a carteira ou alguém lha subtraíra com tudo lá dentro. O cartão de cidadão. O resto ainda era como outro. "Agora o cartão de cidadão, o sr. doutor sabe a falta que ele faz. Até se pode ir preso!"

Pedira nova emissão. Pronta para levantar há várias semanas. Já lá fora um dia, outro dia. Mais um dia. Outro dia. Não chegara a sua vez. Sempre filas de dezenas e centenas de pessoas à frente. Horas e mais horas sempre à espera. Aqui entrava eu. "Se conhecesse lá “alguém”…"

O senhor Mota não enxergava outra solução. Só um empenho. Afinal, só queria levantar o cartão de cidadão. Farto de esperar em filas infindas. De gastar o pouco dinheiro da reforma em viagens inúteis.

Não conheço 'alguém' na Loja do Cidadão. Tentar-me-ia a fazer-lhe o 'jeito'. Driblava a burocracia. Carregaria com o fardo da denúncia pública de “tráfico de influências”. Coisa gravíssima em tempos de puritanismo em que, se alguém espirra em Vinhais, desperta o guarda dos costumes na Ilha de Armona.

O drama do senhor Mota multiplica-se indefinidamente. Coisas pequeninas infernizam-nos o quotidiano. O cartão de cidadão, a carta de condução de emissão ou renovação atrasadas longo tempo, a autorização de residência, o certificado disto e daquilo. A Internet que recusa receber a declaração de impostos. Gasta-se o tempo livre a aturar a incompetência e a sua irmã gémea, a burocracia.

As leis protestam o direito de todos à informação. Aos serviços que se querem e logo pagam. Ninguém informa, nem actua a tempo. Os dirigentes não sabem de nada. Nem querem saber. São inacessíveis. Não falam nem ouvem ninguém. Querem o lugarzinho. Os subalternos receiam os dirigentes. Os sites têm telefones que ninguém atende ou atende mas não informa ao telefone. É tudo confidencial. Sigiloso. Os endereços electrónicos, com poucas excepções, não respondem.  

A Constituição da República – sempre ela – dá a todos o direito de saber a situação dos processos que lhe dizem respeito. Estrangeiros inclusive que têm os mesmos direitos que todos nós. Por aí abaixo, da lei ao decreto-lei, da portaria ao despacho, tudo quanto é norma diz o mesmo. Retórica. Esbarra-se com filas, falta de funcionários, processos que não se encontram. A burocracia. Com a “reforma do Estado”. A “mobilidade especial”. A “requalificação profissional”. Tudo a complicar, dificultar. Parece que nos querem mal. O Estado amealha nos salários. Um funcionário faz de três ou mais.

O senhor Mota paga de várias formas: impostos, reforma cortada, transportes caros. Paciência gasta. Acumulação de rugas. Nervos a roê-lo com seus noventa e tal anos. Paga o serviço antes de ser servido. Não é servido. As leis estão bem. As mentalidades é que não.

Não tenho visto o senhor Mota na busca insana do cartão de cidadão. Vou sugerir-lhe que procure antes a versão erudita do mesmo. O Citizen Card. Em inglês, tudo se resolve e encontra muito mais depressa.

Procurador-geral adjunto

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