Cromossomas seguem um código da estrada quando a célula se divide

Descoberta de equipa portuguesa revela que o movimento dos cromossomas é guiado por sinais de “trânsito” de natureza química.

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Célula a dividir-se: os microtúbulos estão visíveis a branco e aqueles que não têm tirosina a verde; a violeta está a proteína motora CENP-E Marin Barisic /Helder Maiato/IBMC

Uma equipa coordenada por Helder Maiato, do Instituto de Biologia Molecular e Celular (IBMC) da Universidade do Porto, acaba de provar que existe um código da estrada dentro das células. Publicada na última revista Science, esta descoberta vem aprofundar o conhecimento sobre o movimento dos cromossomas durante a divisão das células.

O código da estrada é uma metáfora utilizada pela equipa, num comunicado de imprensa do IBMC, para dizer que existem certos “sinais” químicos nos microtúbulos — pequenos tubos que estruturam e organizam o interior das células, servindo-lhes de suporte, e que são a principal rede de transporte intracelular. Os microtúbulos funcionam assim como estradas no interior das células.

Nos microtúbulos deslocam-se diversas proteínas ditas “motoras”, que transportam atreladas a si enormes volumes — como, por exemplo, vesículas que andam de um lado para o outro no interior da célula, as mitocôndrias e os cromossomas. “Esta rede de auto-estradas é bastante complexa e desconhecia-se, até hoje, como é que se orientam as proteínas motoras que transportam os cromossomas”, explica-se no comunicado.

No fundo, a questão é: como é que as proteínas motoras que carregam os cromossomas dentro da célula, durante a divisão celular, fenómeno que nunca pára ao longo da vida, sabem que caminho devem seguir?

No momento da divisão celular, forma-se uma nova rede de microtúbulos para além da que já existe na célula — o fuso mitótico. Esta estrutura celular efémera tem o formato de uma gaiola, devido aos seus microtúbulos em forma de filamentos muito compridos. Uma das funções do fuso mitótico é a distribuição dos cromossomas pelas duas células-filhas que resultarão da divisão de uma célula. Para que uma célula dê origem a duas células geneticamente iguais, os cromossomas, que contêm a informação genética muito compactada, têm assim de ser distribuídos de forma igual pelas novas células.

Mas, além de ser a maquinaria de distribuição dos cromossomas, ainda antes disso o fuso mitótico tem a função de juntar ao centro da célula todos os cromossomas. “Durante a divisão celular, estabelece-se uma rede de microtúbulos, cuja função é colocar os cromossomas na zona central das células, para que depois se separem equitativamente entre duas células-filhas”, explica o primeiro autor do artigo científico, Marin Barisic, do IBMC, no comunicado.

E, de facto, logo no início da divisão celular, grande parte dos cromossomas fica logo estacionada no meio da célula — a zona central da tal rede de estradas. Mas alguns ficam fora dessa “zona de estacionamento”, como lhe chama a equipa. Estes últimos cromossomas vão ser obrigados a percorrer um caminho mais longo: primeiro, têm de ir até aos pólos, ou extremidades, da célula para daí seguirem para a zona central. Só quando estiverem todos alinhados ao centro da célula é que os cromossomas se separam em duas partes. Cada uma é então puxada para os pólos da célula e ela divide-se.

“No primeiro momento, os cromossomas tresmalhados agregam-se a qualquer microtúbulo da rede que se espalha um pouco por todo o lado, como se fosse uma rede de estradas secundárias do fuso mitótico”, refere o comunicado. “Daí dirigem-se à zona principal dos pólos, que funciona como rotunda, e depois seguem pelas estradas principais até à zona de estacionamento central.”

O que a equipa descobriu foi que, tal como os sinais de trânsito nos indicam o caminho nas estradas, nos microtúbulos existem certos sinais químicos que indicam para que lado deve seguir uma proteína motora que carregue os cromossomas quando uma célula está a dividir-se.

Com e sem tirosina
Para descobrir este código da estrada para os cromossomas durante a divisão celular, a equipa estudou agora uma das proteínas motoras — a proteína CENP-E. E ainda um dos “sinais” químicos existente nos microtúbulos durante a divisão celular — a tirosina (que é um dos aminoácidos, os tijolos das proteínas).

A equipa fez então uma série de experiências, tanto com células vivas, como apenas com microtúbulos e a proteína motora CENP-E. Os cientistas ora adicionaram tirosina a todos os microtúbulos do fuso mitótico, ora a removeram de todos os microtúbulos, para poderem determinar a função dela. “Quando se mudam os sinais ao longo dos microtúbulos, altera-se completamente a circulação dos cromossomas que estão em trânsito”, diz Helder Maiato a propósito das conclusões.

Com a tirosina presente em todos os microtúbulos do fuso mitótico, os cromossomas tresmalhados dirigem-se até aos pólos, mas depois ficam lá bloqueados e não avançam até ao centro da célula. E sem tirosina em todos os microtúbulos, esses cromossomas afastam-se ainda mais dos pólos da célula e perdem-se pelas estradas secundárias.

Para que tudo funcione como é normal na divisão de uma célula, os microtúbulos na parte dos pólos têm de ter tirosina, enquanto os microtúbulos na parte do centro não a podem ter.

Nos pólos, a presença da tirosina parece funcionar assim como um sinal que indica à proteína motora que naquele momento carrega os cromossomas que se deve dirigir para ali. Já no centro da célula, a ausência da tirosina é como se deixasse o caminho livre, como uma cancela que se abre, para que a proteína motora possa arrastar os cromossomas e os junte a todos ao meio.

Como a realidade tem sempre a sua complexidade, diga-se também que a proteína motora que transporta os cromossomas até aos pólos não é a mesma que depois os leva até ao centro da célula. A proteína motora que recolhe os cromossomas perdidos até aos pólos é a dineína — uma descoberta também da equipa de Helder Maiato, publicada na revista Nature Cell Biology em Novembro do ano passado. “Uma vez nos pólos, a proteína que levou os cromossomas para lá [a dineína] fica adormecida. E a CENP-E é a proteína que domina”, explica-nos Helder Maiato, acrescentando que é esta última que depois tira os cromossomas dos pólos. “Esta proteína trabalha de forma mais eficiente nos microtúbulos que não têm tirosina. E é possível que a dineína possa preferir os microtúbulos tirosinados”, diz-nos ainda.

“Há muito que se suspeitava que existia um código nos microtúbulos, mas nunca se tinha demonstrado de uma forma tão evidente para que serve”, sublinha, agora no comunicado, Helder Maiato. “Provámos, através de experiências em células vivas e reconstituindo o processo in vitro [só com os microtúbulos e a proteína motora CENP-E], que um sinal integrado nos microtúbulos é capaz de indicar o caminho correcto aos cromossomas durante a divisão celular”, refere.

“Possivelmente, existirão inúmeros sinais como este, capazes de condicionar o movimento das várias proteínas motoras.” A confirmar-se a existência desses outros sinais químicos, então estar-se-á na presença de um autêntico sistema de navegação intracelular — “um verdadeiro GPS celular, que irá revolucionar a nosso conhecimento sobre a dinâmica dos cromossomas durante a divisão celular”, acrescenta Helder Maiato.

“Por que é que esta descoberta foi publicada na Science? Porque implica uma mudança: pensava-se que as proteínas motoras eram ‘cegas’ a estes sinais e eram ‘inteligentes’ para levar os cromossomas. [Afinal], essas proteínas motoras lêem informação nas estradas que percorrem e isso não se sabia”, responde o cientista.

“Os sinais já eram conhecidos: já se sabia que os microtúbulos que apontavam para o centro da célula não tinham tirosina. Não se sabia é o que isso queria dizer. Agora descobrimos que as proteínas motoras são sensíveis a esses sinais, a essas modificações químicas — neste caso, à tirosina.”

Para compreender a essência biológica da vida, é preciso conhecer como funcionam esses processos a um nível muito elementar, como é o caso da divisão celular (“um cromossoma que se perca é suficiente para [semear] o caos”, frisa o investigador). E, dessa forma, acabar também por compreender doenças como o cancro, em que ocorre a divisão anormal dos cromossomas e pode haver problemas de sinalização do caminho. E ainda desenvolver terapias específicas para cada doente.

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