Até quando viverás, ó confidencialidade?

O grande problema é o da bisbilhotice, o da curiosidade gratuita, praticada por anónimos a coberto das suas funções naturais.

Fala-se, agora, muito de cidadãos VIP bafejados pela sorte por, havendo quem espreite os seus rendimentos e a sua situação fiscal, vêem forma de perseguir os curiosos. O escândalo resulta da óbvia surpresa: só as pessoas muito importantes beneficiam desse mecanismo!? O direito ao sigilo não é global?

Pois é aqui que está o busílis. Muitos pensam que a digitalização das informações pessoais é incompatível com a confidencialidade – o sigilo acabou, nada a fazer!... Não se trata de nos resignarmos à existência de piratas informáticos – é conhecido que, por mais barreiras e fechaduras, os ladrões sempre se mantêm capazes de as abrir. Para esses, com maior ou menor eficácia, temos já as polícias e a Comissão de Protecção de Dados Pessoais para nos ajudar e proteger.

Contudo, todos o sabemos, o grande problema é o da bisbilhotice, o da curiosidade gratuita, praticada por anónimos a coberto das suas funções naturais. Veja-se o caso dos registos de saúde nos hospitais. É gritante a facilidade com que qualquer pessoa arranja um amigo que trabalha lá para saber o diagnóstico do vizinho que namora com a prima da sua cunhada. É espantoso como todos os colegas de um profissional de saúde que foi internado acompanham a sua evolução e, quiçá com simpatia, se agradam com as boas notícias ou choram as fatalidades, mesmo que o doente queira manter reserva da sua situação. Também é fantasticamente fácil que alguém consiga aceder a dados de saúde ou outros com finalidades perversas em conflitos judiciais ou negócios.

O combate à perda de confidencialidade dos dados pessoais parece assim uma tarefa difícil e só capaz de êxito se se reforçarem as barreiras, duplicarem as fechaduras e criarem torres de marfim inexpugnáveis. Ora, não podemos esquecer que o acesso a dados pessoais também é muitas vezes do interesse dos seus titulares – no caso da saúde isso é evidente. Como compatibilizar o segredo com o acesso?

A solução é conhecida dos técnicos informáticos (ver Luís Antunes e colaboradores, Departamento de Ciência de Computadores, Faculdade de Ciências, UP) e só não é aplicada globalmente pela enorme incompetência e inércia dos decisores máximos. A solução não resolve tudo mas, seguramente, desencoraja e afasta a grande maioria dos curiosos. Trata-se, aliás, de uma recomendação já feita no Parecer n.º 60/2011 do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida sobre informação em saúde e registos informáticos.

É forçoso que, junto de informação em saúde, como junto de informação fiscal ou outra sensível, relativa a todos nós, “em caso de acesso indevido aos registos de uma pessoa, surja um alerta para a inconformidade da pretensão, mantendo embora a possibilidade de acesso desde que seja preenchido um campo onde se fundamentem as razões para aceder nessas circunstâncias e se reconfirme a senha pessoal”. Ou seja, se alguém se aproxima do que não deve, só pode avançar se se identificar de novo, salvaguardando-se assim os acessos úteis e responsáveis. Só “parte o vidro” quem precisa mesmo.

Neurologista aposentado

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