Raiva e introspecção em Cabul depois da morte brutal de uma afegã

O homicídio da jovem de 27 anos por uma multidão galvanizou o Afeganistão de uma forma que nenhuma outra atrocidade tinha conseguido.

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Um grupo de mulheres transportou o caixão de Farkhunda Mohammad Ismail/Reuters

Em vida, Farkhunda seria um exemplo improvável da luta pelos direitos da mulher no Afeganistão.

Vestia-se todos os dias com a peça de roupa que lhe cobria o corpo dos pés à cabeça, preferida pelas mulheres muçulmanas conservadoras. Estudava numa escola islâmica. Acreditava, de acordo com o seu pai, que as mulheres deveriam ser educadas para cuidarem dos filhos, assegurarem as tarefas domésticas e fazerem os maridos felizes.

Depois de morta, no entanto, Farkhunda tornou-se num rosto dos direitos das mulheres. O homicídio brutal da jovem de 27 anos por uma multidão, na semana passada, galvanizou este país de uma forma que nenhuma outra atrocidade tinha conseguido.

Libertou as frustrações enraizadas na sociedade em relação à violência diária que fica sem punição, e sublinhou a luta contínua entre os antigos costumes do Afeganistão e as leis modernas.

“Até hoje, não sei por que é que a minha filha foi morta”, disse o pai de Farkhunda, Mohammad Nader Malikzadah, numa entrevista na casa da família, na quinta-feira. “Ela estava inocente.”

Antes da entrevista, milhares de afegãos tinham protestado em frente ao Supremo Tribunal do país, debaixo de chuva, na maior manifestação até hoje em defesa de justiça para a morte de Farkhunda. “Punam os assassinos”, gritaram alguns. “Despeçam o responsável pela polícia”, exigiram outros. Algumas mulheres pintaram a cara de encarnado, simbolizando a face ensanguentada de Farkhunda – que, à semelhança de muitos afegãos, só usava um nome.

A face ensanguentada foi uma das suas últimas imagens, depois de uma multidão a ter espancado com paus e pedras em frente a uma das mais veneradas mesquitas de Cabul, no dia 19 de Março. Foi acusada de queimar o Corão, um crime punível com a morte no Afeganistão, segundo a lei islâmica – as autoridades disseram mais tarde que ela não tinha cometido esse crime.

Longa morte pública

Apesar de os pormenores não serem claros, algumas testemunhas sugeriram que o ataque foi suscitado por uma discussão entre Farkhunda e o imã da mesquita. Seja como for, a multidão estava decidida a matá-la da forma mais horrível possível. Amarraram o corpo a um carro, arrastaram-no, queimaram-no e lançaram-no ao rio Cabul.

A multidão demorou duas horas a matá-la, sob o olhar de outras centenas de pessoas e de polícias armados, que nada fizeram para salvar Farkhunda dos seus atacantes. A esquadra da polícia mais próxima estava a apenas cinco minutos a pé da mesquita. Muitas testemunhas tiraram fotografias e gravaram vídeos com os seus telemóveis.

Azizullah Royesh, um conhecido activista, disse que muitos afegãos ficaram chocados com a morte pública de Farkhunda, sem que ninguém a tivesse tentado ajudar.

A morte dela obrigou muitas pessoas a fazerem uma introspecção, “para verem a situação miserável em que elas próprias vivem”.

Repensar tudo

“Este ultraje é um tipo de reacção das pessoas contra o seu próprio silêncio, contra a sua própria indiferença”, disse Royesh. “É uma fase em que os afegãos começam a repensar tudo.”

O homicídio, e a condenação pública que se seguiu, não poderiam ter chegado numa altura pior para o Presidente do Afeganistão, Ashraf Ghani. Ensombrou a sua primeira visita oficial a Washington, onde está a tentar fazer passar a imagem do Afeganistão como um país no caminho certo, comprometido com a democracia e com o primado da lei, mas ainda a precisar de muita ajuda militar e económica dos Estados Unidos.

Antes de ter partido para Washington, Ghani referiu-se ao ataque como um acto “odioso” e prometeu uma investigação profunda. As autoridades agiram de forma rápida, mais do que em qualquer outro caso de homicídio. Na terça-feira, o ministro do Interior, Noor ul-Haq Ulumi, anunciou a detenção de 28 suspeitos no homicídio de Farkhunda, e o despedimento de 20 polícias, incluindo o chefe da polícia local.

“Estão todos a ser interrogados para determinar as razões por trás da ausência de protecção a Farkhunda e o falhanço no controlo da situação”, disse Ulumi.

Mas essa negligência da polícia foi apenas o mais recente caso numa longa história de falhanços na protecção das mulheres afegãs. Na época em que estiveram no poder, os taliban negavam às mulheres o acesso à educação e ao emprego, e obrigavam-nas a usar a burqa.

Costumes tribais

Desde a queda dos taliban, em 2001, os Estados Unidos e outras nações ocidentais enviaram centenas de milhões de dólares para o Afeganistão, numa tentativa de promover a igualdade de género. Muito mais raparigas têm agora acesso à educação, e a igualdade de direitos para homens e mulheres passou a estar inscrita na Constituição.

Mas em muitas partes do país, os costumes tribais, as tradições e os preceitos religiosos ainda levam à supressão dos direitos de muitas mulheres.

Elas enfrentam elevados índices de violência doméstica e são forçadas a casarem-se, ainda em crianças; algumas são vítimas de homicídios de honra.

Durante a campanha presidencial do ano passado, Ghani prometeu reforçar a protecção das mulheres e fazer o país cumprir a lei. Mas para muitos activistas que se manifestaram na quinta-feira, o homicídio de Farkhunda serviu como recordação das ameaças que as mulheres afegãs continuam a enfrentar.

“O homicídio de Frakhunda mostra que o Afeganistão continua a ser o país mais perigoso do mundo para as mulheres”, disse Fawzia Koofi, uma proeminente advogada afegã e activista dos direitos das mulheres, durante a manifestação de quinta-feira. “Se a lei não for cumprida, não apenas as mulheres, mas qualquer ser humano no país não estará em segurança.”

Koofi, que faz parte da equipa do Governo que está a investigar o homicídio, preocupa-se com o facto de que os líderes tradicionais possam pôr em causa a investigação, receando que as conclusões dêem mau nome à mesquita e aos seus seguidores, e por extensão ao islão.

“Estes líderes tradicionais pensam que são os únicos que podem proteger a religião”, disse Koofi.

Um pouco mais tarde, olhou para o batalhão de polícias, com escudos de protecção e bastões, que foi enviado para manter a ordem na manifestação.

“Estão aqui centenas de polícias para nos protegerem”, disse Koofi. “Onde estavam eles quando aconteceu aquele acto brutal?”

Caixão erguido por mulheres

Outras mulheres activistas disseram que ficaram assustadas com a morte de Farkhunda, cujo conservadorismo seria elogiado pela maioria dos afegãos. A morte dela mostra que qualquer mulher pode ser um alvo.

“Se a multidão trata de uma forma brutal uma mulher com um véu completo, trataria de uma forma muito pior as mulheres que não usam um véu completo, como eu”, disse Zulfia Zulmay, uma advogada e vice-presidente da Ordem Independente dos Advogados, que se apresenta com um lenço a cobrir a cabeça e um par de óculos modernos.

Na casa da família de Farkhunda, na terça-feira passada, o seu pai e dois irmãos receberam vários homens, amigos e familiares, que vieram prestar as suas condolências. As suas sete irmãs e a mãe estavam numa outra divisão da casa, como é costume. Farkhunda foi lembrada como uma mulher devota e bondosa, que se ofereceu para dar aulas numa escola local. Estudou a lei islâmica e queria tornar-se procuradora.

O pai tentou explicar a morte de Farkhunda. Ela criticava o imã que liderava a mesquita por vender amuletos aos pobres, a mulheres desesperadas, dizendo que tinham poderes mágicos.

Algumas testemunhas disseram aos jornais locais que Farkhunda tinha começado a discutir com o imã sobre esses amuletos. O imã terá então acusado a jovem de ser uma não-muçulmana e de queimar o Corão, levando a multidão a matá-la.

Por isso, segundo os seus familiares, era apropriado que o caixão fosse transportado por mulheres durante o funeral, no domingo passado, uma tarefa tradicionalmente entregue a homens.

Depois de morta, Farkhunda tornou-se num exemplo.

“Nos últimos 13 anos, a comunidade internacional não foi capaz de dar tanto poder às mulheres como o sangue da minha irmã”, disse um dos seus irmãos, Mujibullah Malikzadah, não escondendo o orgulho. “Foi único na história do Afeganistão – uma mulher foi enterrada por outras mulheres.”

Exclusivo Público/The Washington Post

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