A guarda das velharias (ao jeito de uma parábola)

Estamos num tempo e espaço em que o maior dos desafios de qualquer estratégia sociopolítica será o fomento da natalidade. Criação de seres com potencial de saúde por seres comprometidos com a saúde da sociedade que lhes deu o ser num ambiente familiar com qualidade.

Índice de envelhecimento preocupante, força laboral esgotada, renovação populacional comprometida.

País de velhos que fomos criando este país de futuro comprometido. Mas a sabedoria (tempero do tempo e das coisas) é um dos seus grandes tesouros: o seu maior depósito tantas vezes escondido, poucas vezes percebido quase nunca (nem que por acaso) encontrado.

Há uma nova “espécie” entre nós (o idoso numa sociedade de velhos) que precisa de ser conhecida, compreendida e valorizada/aproveitada. Várias ações se têm incrementado pelo país fora para perceber e “acudir” a esta novidade demográfica que é a da pirâmide tronco ou invertida. Sobressaem as formações contínuas ou avançadas (pós-graduações…) a diversos níveis e para as diferentes classes profissionais. Numa destas, ocorrida na Católica Porto, levantada foi a questão: será de perguntar como para elas temos despertado e como delas as temos aproveitado. E ocorreu-me fazê-lo conto-questionando. Aqui fica.

“Era uma vez uma ânfora. Feita com carinho e desvelo do oleiro, serviu-lhe quando nova, para guarda e provisão da cristalina água, matadora da sede nos tórridos dias de verão e necessária envolvente dos caldos reconfortantes dos dias de inverno. Bordos de beiços lascados foi sendo tida para outros menos expostos fins. Até chegado o dia em que, pelo desgaste acontecido do uso e do tempo, foi enchida do conteúdo mais valioso e escondido que a poderia esperar: passou a ser a guarda do tesouro da casa.

Era, de facto, bem escondido bem: envolta de plástico e de leve camada de cimento coube-lhe em sorte ser enterrada na loja do casarão. As circunstâncias fizeram com que ninguém da família desvelasse o tesouro e se viesse dele a aproveitar. Nem os empregados que à sombra da nobre casa viviam.

Já em ruinas a casa, um dia ao desbarato arrematada, torna-se o lar feliz de uma numerosa e pobre mas afetuosa família.

A remoção do entulho pôs a descoberto a encoberta ânfora, para o quinteiro ao deus-dará despejada. Acaba, no seu destino, a emoldurar o recanto florido do mesmo quinteiro, em jardim transformado.

O seu valor virou descoberto quando, quebrada pela assustada criança (se mais com o medo do sucedido se mais com o surpreendente do encontrado), a agora desfeita guarda-velharias (de ouro, joias e dinheiro acumulados ao longo dos anos intensa e valiosamente vividos), por outrem e em outro tempo se vira achada.”

Docente do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica Portuguesa, no Porto

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