Fusão, separação e reparação em Björk

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Em Drawing Restraint 9, filme de 2005 do artista americano Matthew Barney, com a então esposa Björk, a música interrogava as imagens como um diálogo, não se limitando a reflecti-las, contribuindo para a criação de climas obsessivos.

O filme resultava numa alquimia de imagens (dele) e música (dela), sendo os corpos de ambos sujeitos da acção, liquefazendo-se na fantasia de todos os amantes: a fusão total.

Eram os tempos em que Matthew Barney, um dos artistas mais influentes da sua geração – aos 36 anos converteu-se no artista mais novo a ser alvo de uma retrospectiva no museu Guggenheim – e Björk pareciam constituir uma só entidade.

Depois veio a separação, pondo fim a uma relação afectiva de 12 anos, com um filho pelo meio. E este ano surgiu Vulnicura, disco de catarse, onde mais do que expor dor ou zanga – como acontece tantas vezes nestes casos – coloca-se também ela em causa. Talvez a única forma de compreender e de renascer.

Neste caso, o ponto de partida para o disco, foi a sua própria experiência. Outras vezes têm sido conceitos. Ou sentimentos particulares. Uma coisa é certa: todos os seus discos são diferentes dos anteriores. Cada álbum segue uma direcção nova independentemente do precedente. Em cada novo projecto cria um círculo desenhando um novo universo.

Recomeça. Renasce. Atribui sentidos a emoções, ensaios ou ideias. Como num livro. Como num filme. Como numa coreografia de dança. Numa instalação. Ou num quadro.

Não espanta por isso que para muito boa gente ela personifique para a cultura contemporânea o mesmo que, por exemplo, Picasso ou Andy Warhol já representaram no passado: a possibilidade de experimentar, com alguma liberdade, e ainda assim conseguir o reconhecimento popular.  
O ponto de partida são canções. Mas depois existe um mundo de possibilidades para as transmitir ou representar, através dos mais diversos suportes, sejam imagens, roupas, noções filosóficas ou novas tecnologias. Nada de novo. Basta pensar em alguns dos nomes da música que ela diz que mais a influenciaram: Stockhausen, Kraftwerk, Brian Eno ou Mark Bell.

Todos eles redefiniram as fronteiras da música popular e as conexões entre música e arte. Sentem-se em casa em galerias de arte ou salas de concertos. A música é apenas o ponto de partida para os mais diversos desenvolvimentos artísticos.

Foi o MoMA que procurou Björk e não o contrário. Ao longo de anos ela resistiu à ideia de ir parar ao museu. Muitas das críticas negativas que têm surgido acerca da exposição de Nova Iorque apontam para essa ideia que o museu não soube apresentar a obra da islandesa. Não por essa obra não ser artisticamente diversa e complexa, mas exactamente o contrário: é a exposição que não alcança e traduz essa riqueza.  

Desde o primeiro momento que Björk desafia convenções. Em primeiro lugar, a voz, a visceralidade do seu canto, o corpo e a respiração também musicando, nessa forma de estar aproximando-se do estilo muito próprio da cantora, compositora, bailarina e coreografa americana Meredith Monk.

Foi ao ouvi-la que percebeu que a voz poderia ser o mais maleável dos instrumentos, embora quando se trate de nomear as cantoras da sua eleição goste de referir os nomes de Joni Mitchell, Abida Parveen, Nico, Kate Bush ou Amália Rodrigues.

Todos os seus álbuns começam com ela, sozinha, no seu casulo, material em bruto para onde vai canalizando comoções ou ideias. Mas não é uma caverna fechada ao exterior. Não é refúgio. É uma caverna que nos revela que viver a realidade de outras formas é possível. É um espaço de reflexão pessoal, mas também de troca, feito com colaborações que a auxiliem a traduzir o seu trabalho. O culto fantasioso do génio solitário não é para ela. Cada álbum é uma realização colectiva com músicos, técnicos de som, produtores, designers ou videastas.

Por vezes sente que é necessário sair das canções, rodeando-as, procurando criar informação complementar para as descodificar. E quando é necessário comunicar ideias que estão para lá da audição de discos, reforçando ou problematizando o universo inicialmente difundido pelas canções, lá estão os videastas e realizadores Spike Jonze, Chris Cunningham ou Michel Gondry, os fotógrafos Jürgen Teller, Nan Goldin ou Nick Knight e o falecido designer de moda Alexander McQueen.

Sempre foi assim. A ideia de comunidade agrada-lhe. Nos anos 1990 vivia na Londres da cultura da música de dança, do rebentar do drum & bass, do pós-hip-hop e da editora Warp, não admirando que nos três primeiros álbuns – Debut (1993),  Post (1995) e Homogenic (1997) – fosse rodeada por Nellee Hooper, Goldie, Talvin Singh, Leila Arab ou Mark Bell (LFO).

A partir da sua experiência como actriz no filme Dancer In The Dark, de Lars Von Trier, e da feitura da banda-sonora para o mesmo (Selmasongs de 2000), a islandesa encetou uma viragem, cada vez mais interessada em promover novas formas de criar, consumir e expor música, para além dos modelos comuns, adaptando os contributos à especificidade de cada álbum, às personagens ou histórias que desejava transmitir.

Na definição do universo íntimo de Vespertine (2001) contou com a harpista Zeena Parkins, o duo Matmos ou Herbert e para Medúlla (2004) colaborou com Mike Patton, Dokata ou Robert Wyatt. Na banda-sonora The Music From Drawing Restraint 9 rodeou-se dos velhos amigos Mark Bell e Leila Arab e em “Volta (2007) estiveram presentes de Timbaland a Antony, enquanto em Biophilia (2011) mapeou a intersecção entre arte, natureza e tecnologia, com a ajuda do escultor sonoro Henry Dagg ou do programador Damian Taylor.

No novo Vulnicura é o músico e produtor venezuelano Alexandro Ghersi, de 26 anos, mais conhecido por Arca, que emerge como grande cúmplice. Independentemente das colaborações a sua marca autoral é inegável. E não é apenas nas canções e na música propriamente dita, é também na forma como quer que seja relacionada ou comunicada.

Envolve-se directamente em todos os mecanismos de criação. Curiosamente o seu novo álbum é provavelmente aquele onde se sente menos que é um ponto de partida para activar outros desenvolvimentos artísticos, o que não deixa de ser irónico no ano em que vai completar 50 anos, é alvo de uma grande exposição e é lançado o livro Archives, que dá conta da sua acção global.

Cada novo projecto onde se envolve parece corresponder a uma utopia. O novo espectáculo ao vivo – estreado no sábado passado no Carnegie Hall de Nova Iorque – constituiu mais um desses ensaios, com uma nova solução cénica, rodeada por um ensemble de cordas de quinze elementos que, afinal, sublinham ainda mais a vontade de isolamento denunciada no novo álbum. Com ela é sempre assim. Recomeçar de novo.

Em primeiro lugar é preciso fazer o luto da experiência anterior. Depois é necessário ir explorando individualmente novas motivações interiores ou exteriores. Finalmente é preciso incorporá-las, individual e colectivamente, até serem transmitidas.

Quando a convidaram, uma e outra vez, para a exposição do MoMA, a islandesa resistiu. Sempre reagiu às categorizações e olhava para o seu corpo de trabalho como qualquer coisa de uno. Achava que qualquer exposição que fosse sobre a sua arte, e não a sua arte, estaria condenada a enfrentar problemas. Provavelmente terá razão. Já se sabia que não seria fácil pendurar as canções de Björk numa parede. Agora ficámos a saber que a sua arte total também resiste à museificação.

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