Os imensos desafios da Viagem de Inverno

A prestação de Stutzmann foi de elevada qualidade artística mas poderia ter ido mais longe, tanto no plano narrativo como na construção dramatúrgica do ciclo.

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Nathalie Stutzmann com Inger Södergren DR

Conhecida pela sua rara voz de contralto, Nathalie Stutzmann tem um repertório amplo, que se estende desde o barroco até à música do século XX, e uma carreira multifacetada, que inclui a direcção de orquestra para além da interpretação vocal.

Teria sido interessante poder apreciar também essa faceta em Lisboa através de um programa com a sua orquestra de câmara Orfeo 55 (cujo recente CD Handel – Heroes from the Shadows tem sido bastante bem recebido pelo público e pela crítica), mas a Gulbenkian preferiu apresentar mais uma vez a Winterreise (Viagem de Inverno), de Schubert, que a cantora francesa já tinha vindo fazer ao Grande Auditório há 10 anos com a mesma pianista (Inger Södergren).

Nessa época, Stutzmann tinha acabado de gravar o ciclo na etiqueta Calliope, tendo depois registado O Canto do Cisne em 2005 e A Bela Moleira em 2008. As três gravações foram recentemente reeditadas pela Erato. Schubert tem sido pois um assíduo companheiro de viagem, o que pressupõe um progressivo amadurecimento interpretativo, que não foi completamente evidente no recital de sábado. É certo que a Viagem de Inverno tem uma tradição interpretativa imponente (com cantores da estatura de Fischer-Dieskau; Hans Hotter, que foi professor de Stutzman; Christoph Prégardien ou Mathias Goerne, para citar apenas alguns, e versões do lado feminino como as de Christa Ludwig ou Brlgitte Fassbaender) pelo que as expetactivas em cada nova abordagem implicam sempre uma fasquia muito alta.

A prestação de Stutzmann foi de elevada qualidade artística mas ficou aquém destas referências, tanto no plano narrativo como da construção dramatúrgica do ciclo como um todo. O seu timbre fora do comum (denso e escuro) tem a vantagem de se adequar muito bem ao universo de uma obra que faz convergir a desolação do Inverno que se abate sobre a Natureza e o estado de alma do viandante romântico protagonista, mas seria desejável uma maior contenção no vibrato, o que proporcionaria uma dicção mais clara.

A cantora procurou vestir literalmente o personagem do viandante (usando trajes masculinos estilizados), indo ao encontro da concepção original da composição, destinada a uma voz masculina. Nas primeiras canções, Stutzmann foi menos convincente, mas pouco a pouco foi ganhando em densidade expressiva e maior subtileza nas nuances de cor e nas dinâmicas. Sem exageros de teatralidade na exteriorização dos estados psicológicos e das múltiplas emoções que emergem das 24 canções, manteve um certo distanciamento e sobriedade, não obstante algumas caracterizações especialmente sugestivas em páginas como Frühlingstraum (Sonho de Primavera), Einsamkeit (Solidão), Die Post (O correio), Die Krähe (A gralha) e Der stürmische Morgen (Manhã de Tempestade). Pelo contrário, a tensão gerada pelo ladrar dos cães evocado pela parte pianística em Die Dorfe (Na aldeia) foi discreta assim como o mistério inquietante que emerge das últimas duas canções: Die Nebensonnen (Os paralélios) e Der Leiermann (O tocador de realejo). Apesar das reservas e da escolha discutível de alguns andamentos, Inger Sõdergren soube em geral fazer emergir a relevância do piano no mundo musical de Schubert e mostrou uma forte sintonia com Stutzmann, cuja prestação foi acolhida com calorosos aplausos.

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