Pegar na dor e torná-la nesta beleza estranha

Stasia Irons faz beats e rapa; Catherine Harris-White canta, escreve e produz um pouco. Juntas criam discos que reorganizam o passado da música negra num futuro inclassificável. EarthEE, o segundo das meninas, é obra-prima.

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É dia de folga e um indivíduo genérico está sentado na sua sala a folhear revistas; tem a rádio, ou o Spotify, ou o laptop, um deles a botar música, e eis que a orelha do indivíduo empina quando as pequenas ondinhas de som vindas do rádio ou do laptop o atingem.

Ao início o indivíduo questiona-se sobre que estranha música será aquela; verifica tratar-se de EarthEE, o segundo álbum das THEESatisfaction, informação que nada lhe diz. Escutado o álbum, o sujeito – prostrado perante tanto engenho – dá por si de boca aberta, feito tolinho, a olhar para o aparelho que bota som, como se mirá-lo pudesse dar resposta à questão que o atormenta: “Que raio de disco é este e como é que se faz música assim?”

Por uns instantes cuida que para explicar fenómeno tamanho é necessário recorrer a complexas fórmulas matemáticas, estudar harmonia e contra-ponto, treinar derivadas. Mas é tudo mais simples que isso: o mundo, diz Catherine Harris-White, está “cheio de ritmos incomuns, padrões inusitados, melodias inesperadas” e “a maior parte das pessoas”, sejam ouvintes ou compositores, “ficam presas a soluções fáceis”, o que é uma pena, porque assim “perde-se o lado mais criativo”, que é “o que torna tudo isto divertido”. O que elas fazem, continua, é recusarem-se a criar “partindo dos formatos pré-definidos vigentes” e darem-se ao luxo de “experimentar tudo o que [lhes] apetecer”.

Catherine Harris-White, Cat para os amigos, é metade das THEESatisfaction, um combo de hip-hop americano composto por duas senhoritas, cujo disco de estreia, awE naturalE, criou um súbito surto de embeiçamento por entre a comunidade melómana que povoa a terra, que não sabia bem como qualificar o objecto: havia tons de jazz e sombras soul mas não era só isso, o mistério enclausurado naquela rodela continha algo de psicadélico e simultaneamente sombrio, cuja raiz era difícil de traçar. Daqui resultava um paradoxo: awE naturalE podia passar por disco de vanguarda; mas também era, claramente um álbum de quem sabia pertencer a uma tradição. “Nós não queremos imitar ninguém”, dizia-nos Cat ao telefone, “mas também não queremos perder a ligação com a música de onde viemos”.

Os media, na tentativa de encontrar uma genealogia para awE naturalE, mencionram todo o tipo de nomes, dos Digable Planets a Sun Ra ou Pharao Sanders. Numa entrevista ao Guardian as meninas elogiaram as TLC – a música das THEESatisfaction pode ser reptilínea, opiácea, mas elas não descuram a pop: “Crescemos com a rádio e a MTV, rodeada de música que era feita para as massas e claro que isso nos influencia. O Stevie [Wonder] e o Michael Jackson eram os reis da pop mas o que escreviam vinha do coração e ao mesmo tempo nunca deixaram de ser experimentais. Pelo que vamos sempre fazer canções com um lado pop – depois umas pessoas identificam-se com elas e outras não”, diz Cat.

Graças às maravilhas da tecnologia pudemos falar com as meninas das THEESatisfaction ao mesmo tempo, apesar de Cat estar em Seattle e Stasia Irons em Nova Iorque. Cat é a mais faladora e é a que, nos discos, canta. Stasia, explica Cat, “é a principal produtora e a que rapa”.

Stasia fala muito pouco, Cat lidera a comunicação da banda – nesse aspecto a hierarquia é clara, e aparentemente natural. No resto, os papéis começam a confundir-se um pouco. “Por norma a Stasia trabalha num beat e eu escrevo”, começa Cat, explicando como funciona o processo criativo da dupla. “Neste disco tenho mais produção, o que me orgulha muito”, continua. “A exposição que o disco anterior teve, criou em nós um certo impacto. Fomos expostas a muita coisa, muita gente, muita música, muitas maneiras diferentes de fazer as coisas e isso tornou-nos mais abertas. Este disco é muito aberto. Desta vez aconteceram coisas como eu fazer um beat, a Stasia trazer uma melodia. Tentámos todas as tácticas possíveis”.

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Se Cat fala em “disco anterior” é porque antes de awE naturalE houve outras obras: EPs, mixtapes, tudo lançado na net. awE naturalE é a estreia oficial, por assim dizer, mas antes houve “um longo processo de tentativa e erro”. (Ainda é Cat a falar.) Elas foram-se “libertando” com o tempo, descobrindo que tinham “muito mais música dentro [delas]” do que sabiam. A própria relação delas começou assim.

De mão dada
Irons e Harris-White conheceram-se há cerca de sete anos, em Seattle, quando ambas andavam na universidade. Stas estudava inglês, Cat canto jazz quando não estava a organizar noites de open mic, em que quem quisesse podia subir ao palco e cantar e rapar – Stas costumava ficar “simplesmente a ouvi-la, maravilhada”. Isto é Stasia a falar, já agora. Elas têm consciência de que pode ser confuso para quem as está a entrevistar perceber quem é que diz o quê a cada momento, pelo que constantemente, quando acabam uma frase, dizem: “Quem acabou de falar foi a Cat” ou “Agora é a Stasia”. O que também denota profissionalismo.

Na relação que a seguir encetaram, foram de mão dada pelo mundo uma da outra fora. Cat cresceu “a ouvir Parliament, Bobby McFerrin”, que diz ter copiado porque “o seu estilo de cantar é muito livre”. Ella Fitzegarld, Sun Ra, Herbie Hancock e Quincy Jones completam a sua galeria de heróis, que no caso de Stasia é mais curta: “Ó meu, antes de mais, vou directa ao Stevie Wonder, se tiver de escolher um músico. Era cego e tinha de confiar nos sons e por isso é que os álbuns dele soam perfeitos”. Stasia mostrou a Cat coisas como gangsta rap, a que esta nunca tinha ligado, e Cat retorquiu com muito jazz.

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Stasia Irons e Harris-White conheceram-se há sete anos, em Seattle, na universidade. Stas estudava inglês, Cat canto jazz quando não estava a organizar noites de open mic, em que quem quisesse podia subir ao palco e cantar e rapar DR

“Nós sempre trocámos muita música”, conta Stasia, “e não ouvíamos a que queríamos ouvir”. “Somos negras, somos mulheres, apaixonámo-nos, ouvimos muita coisa diferente mas não ouvíamos o que queríamos ouvir”, reforça. “Pelo que desde o início sempre quisemos fazer um som só nosso”.

O que foi plenamente conseguido tanto na estreia oficial como no segundo – mas desta feita com mais trabalho. “Tens uma vida inteira para fazer um disco”, explica Cat. “E desta vez sabíamos que havia gente atenta, o que muda um pouco a abordagem. Pelo que diria que este disco foi muito mais difícil de fazer”.

Quando puseram cá fora awE naturalE deram por si, segundo Cat, “num lugar estranho”. “Começámos a pensar acerca de como iríamos fazer música no futuro”. Estavam “surpreendidas” com o êxito da “estreia”, que “funcionou muito bem”. “Não fazíamos ideia de como o disco seria recebido, porque até então íamos pondo as coisas cá para fora na nossa página no bandcamp, e nunca tínhamos polido o som até ao limite. Mas fiquei muito contente – com as críticas, com os elogios dos músicos, com as digressões”.

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Havia então um problema para resolver: como fazer o segundo disco. Numa faixa antiga elas rapacantavam: “We sound weird / In fact we are not from here / We come from there / From outer spaces / Deep spaces / Those places". A premissa manteve-se: EarthEE, ao contrário do que o nome pode dar a indicar, é um disco dos outer spaces, em que o ouro reluz no escuro (é um disco ainda mais escuro), cada beat colocado não para fazer dançar mas para criar um balanço drogado, a voz jazzy de Cat prenha de sedução. EarthEE é o disco que as pessoas esquisitas deste mundo usarão para get in the mood.

Não há um tema como QueenS (de awE naturalE), que Stas define como “O nosso êxito. Ou o mais próximo que conseguimos chegar de um êxito”. Terá sido a canção mais universal das THEESatisfaction e, louve-se a coragem das meninas, elas não tentaram copiá-lo – EarthEE será até mais avariado e menos imediato que awE naturalE.

“Nós não fazemos música de um género específico, nós não fazemos música comercial ou que deixe de ser comercial – fazemos a música que vem do nosso coração e que nos interessa e se as pessoas quiserem comprá-la então melhor”, diz Cat. Depois faz um pausa e atira, a rir-se: “Mas gostávamos de ter um par de êxitos, claro”.

Ocorre-nos então perguntar se, por exemplo, há vinte anos um disco tão estranho como EarthEE teria tido o impacto que awE naturalE teve. Se uma dupla feminina que produz beats teria esta liberdade que elas têm – enfim, se hoje as coisas estão melhores para os artistas negros que não jogam pelas regras óbvias da pop.

E é aqui que a conversa pesa. De forma seca, e após um valente silêncio, Stas responde apenas que “o hip-hop evoluiu, está por toda a parte e as pessoas estão mais habituadas”. E o raio do silêncio não vai embora, até que Cat, agora em tom menos jovial, agora não a rir, confessa: “Sabes, nós tivemos de aturar muita merda quando estávamos a crescer, merdas racistas, merdas más. E só queríamos celebrar, dançar, cantar de modo a essa dor ir embora. Há demasiada dor no mundo e é preciso transformar a dor noutra coisa. Pegar no feio e fazer dele bonito, percebes? É preciso criar beleza, ainda que esquisita”.

Catherine Harris-White e Stasia Irons não são apenas criadores de uma imaginação admirável. São também sábias.

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