A histeria e o direito à dúvida

Num artigo publicado na New Yorker, o crítico e ensaísta Lee Siegel pede que se aplique ao livro que aí vem de Harper Lee o mesmo que Atticus Finch, o advogado do inocente, pediu ao tribunal em Mataram a Cotovia: dêem-lhe o benefício da dúvida. Ao Ípsilon, Siegel explicou o que está aqui em causa

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Harper Lee com Gregory Peck, intérprete da versão cinematográfica de Mataram a Cotovia, livro que, afinal, teve um antecessor

Lee Siegel conheceu Harper Lee há cerca de 15 anos num dos poucos encontros sociais em que aceitava participar. Conta que ficou sentado ao lado da escritora ao longo do jantar, que ela falou muito pouco e ele não ousou quebrar o silêncio. Achou-a tímida, sossegada, modesta, irónica, desconcertantemente sincera, uma mulher pequena que parecia esmagada por ter escrito um livro que era considerado uma das obras de arte da literatura americana.

No fim do jantar ela disse-lhe que ele tinha sido uma companhia fantástica: “O senhor é um dos melhores companheiros de jantar que tive o prazer de ter a meu lado”. Siegel, crítico, escritor, ensaísta, recordou este episódio num artigo que assinou na revista New Yorker a propósito do misto de polémica e curiosidade ruidosa que tem rodeado o anúncio de um inédito de Harper Lee, a escritora que se pensava ser de obra única, a publicar a 14 de Julho, pela HarperCollins.

“A polémica é uma fabricação dos media que estão simultaneamente zangados e a viver um momento aborrecido”, tudo combinado com uma natural curiosidade acerca de uma autora famosa que vive em semi-reclusão. “As pessoas querem ler a sequela de um livro que aprenderam a acarinhar desde crianças”, justifica, falando também de uma nostalgia de um tempo que antecede a Internet e em que os livros eram o centro da cultura. São variáveis a considerar numa análise que tem sido, na opinião de Siegel, marcada pela histeria.

Com opiniões apaixonadas entre os que aplaudem e os que criticam o lançamento do livro num momento em que se questiona acerca da condição de saúde de Harper Lee e do que este novo título pode representar para a imagem da escritora, o crítico chama a atenção para essa aura comparável à de autores como J.D. Salinger, outro escritor que escolheu retirar-se dos olhares públicos.

“Como ele, ela é um enigma e isso, por si só, atrai muitas atenções”. Quanto às preocupações acerca da qualidade do que aí vem, diz que todas as observações que lhe chegam o tiram do sério. “É absurdo. Ninguém o leu, e mesmo que seja terrível, dificilmente afectará a reputação de Mataram a Cotovia. Nesta era digital toda a gente que escreve anda à procura de um assunto e parece-me que Go Set a Watchman é um bom assunto.”

No artigo na New Yorker, Lee Siegel faz a ponte entre a grande mensagem do livro anterior, quando Atticus Finch pede ao tribunal para dar o benefício da dúvida ao homem que está a defender e que está a ser falsamente acusado de violação, para aplicar agora em relação ao novo livro de Harper Lee: “Dêem-lhe o benefício da dúvida”.

Lembra que a escritora não mentiu sobre não escrever mais: o livro foi escrito antes de Mataram a Cotovia.

“Esta é uma primeira versão que vai ser publicada. Se as pessoas se sentem desconfortáveis com isso é porque estão a usar a ocasião para expressar a sua revolta contra a ascendência do poder do mercado e tornam a publicação de Go Set a Watchman um produto da sua raiva. Eu sou capaz de entender isso, mas isso não tem nada a ver com o romance.”

Sobre o que representa Mataram a Cotovia para as gerações mais novas, não tem uma ponta de romantismo. “Para ser honesto, acho que não significa nada para os mais jovens. Para quem, como nós, o leram enquanto os negros lutavam pela sua igualdade nas mais variadas formas, teve uma força moral muito grande e fez parte das nossas vidas. Acho que o filme [de Robert Mulligam, 1962] é mais relevante para os mais novos, mas duvido que muitos o tenham visto.”

Mas o livro importa, sublinha, continua a importar enquanto símbolo. “É um símbolo de tudo quanto tem falhado na nossa cultura, de muita coisa que está em queda e que é essencial. Dá uma noção muito forte acerca de conceitos como bem e mal, certo e errado, de personalidades bem delineadas. E do poder da literatura. Acho que esse poder enquanto símbolo cultural é que está a animar as pessoas e não o poder da obra de arte.” 

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