A armadilha do choque de civilizações

Enquanto não se criar uma alternativa realista, o petróleo irá dividir as sociedades humanas, criadas sobre os valores ancestrais e nunca proscritos do medo, do ódio e da violência.

O Médio Oriente está a ferro e fogo. Não admira: nos seus territórios localizam-se as mais consideráveis reservas de petróleo que existem no mundo. E basta pensar um pouco na componente material da globalização – os transportes, as construções, os aeroportos, a energia – para perceber como a posse destes recursos pode ser geradora de conflitos à escala mundial.

É muito simples: ou se garante o acesso e a possibilidade de se utilizarem esses recursos, essenciais à sobrevivência desta maneira que inventámos para se viver em sociedade, ou se conquista esse direito pela força. Os recursos conhecidos são sempre finitos e, portanto, sempre escassos no horizonte do longo prazo. Enquanto não se criar uma alternativa realista, o petróleo irá dividir as sociedades humanas, criadas sobre os valores ancestrais e nunca proscritos do medo, do ódio e da violência. As sombras da selva cegam a humanidade.

A visão das comunidades que povoam o Médio Oriente, assim como a de muitos outros povos neste planeta onde a modernidade não foi assimilada nem assumida, é uma visão "religiosa" do mundo, cuja índole se caracteriza pela inclusão de uma explicação ou de um princípio de origem divina para garantir a ordem de todas as coisas. Numa visão do mundo com estas características o princípio moderno que nos é tão caro – o da liberdade de expressão do pensamento – é entendido no contexto da noção de espírito crítico que, no entanto, tem como limite e deve submeter-se à orientação superior da fé, ou de quem a encarna. O desrespeito pelo sagrado é punido severamente. É preciso, porém, lembrarmo-nos de que até há cerca de trezentos anos (nalguns casos menos) não era basicamente diferente o modo como na Europa se olhava o mundo e o convívio com o Além.

O que os europeus conseguiram a partir dessa altura – e esperemos que assim continue – foi criar outros tipos de sociedade, baseados numa visão "geométrica" do mundo, apoiados no desenvolvimento de uma cultura de tendência crítica e base experimental. A visão geométrica acolhe a mudança como factor de progresso e encara o mundo social como uma construção resultante das percepções e decisões do quotidiano de um povo soberano. A soberania nacional passou desde então a residir no povo, representado num parlamento – o fundamento das repúblicas liberais e das monarquias constitucionais modernas.

Esta mudança abissal, única na história da humanidade, foi espalhada com maior ou menor sucesso por vários cantos do planeta pelos europeus, através de inúmeras guerras, conquistas e trocas comerciais. Nos inícios do século XX parecia inclusivamente aos impérios ocidentais que a universalidade desta mudança estava adquirida – o que faltava às nações menos desenvolvidas era aprender a ser como nós! Nesta visão linear da história tudo se resumia a uma questão de tempo.

O erro dos que professam esta perspectiva é o de verem a tensão entre as duas visões do mundo como um confronto entre o passado e o presente – um "choque de civilizações"! Trágica armadilha esta, que nos levará somente a mais carnificinas (e a colossais negócios de venda de armamento). Pois não se vê claramente que vivemos todos no mesmo presente, forçados a viver em conjunto, a respirar o mesmo ar? Temos de entender-nos, de respeitar as regras das sociedades em que vivemos, bem como de cumprir as normas dos territórios que habitamos. Sempre foi assim. Onde está, então, o "choque"? Muito simplesmente na necessidade de justificar uma guerra mortífera e selvagem que dilacera o Médio Oriente e que tem como objecto a posse do petróleo.

Não deve admirar, pois, assistirmos a uma radicalização fundamentalista e ao acréscimo generalizado da violência. A guerra santa é a forma de guerra tradicional em todas as regiões em que não houve o corte da modernidade (não nos podemos esquecer das guerras da religião no solo europeu nem das suas perversões em tempos ainda bem recentes...). Numa guerra santa o inimigo é o diabo, e o diabo não merece quartel. Não pode estar a salvo – e a globalização de hoje funciona como um pau de dois bicos.

A guerra é sempre cruel e desumana, mas não conseguimos ainda aboli-la. A Europa saiu derrotada, estropiada, cabisbaixa das guerras do século XX. Ao Médio Oriente sucederá o mesmo no século XXI. Enquanto os povos soberanos não se revoltarem contra os senhores da guerra, a guerra vai continuar a atormentá-los: quer estejam no seu cerne, nas suas margens ou nos seus esconderijos. Por mais que se instalem câmaras de vigilância, por mais que se restrinjam as liberdades públicas, não haverá maior segurança para os cidadãos: apenas mais terror e instabilidade, acompanhados do seu cortejo de medos, ódio e mais violência.

São bem claras as intenções do sistema de poder que nos subjuga: intoxicar-nos com o "choque" serve sobretudo para legitimar a participação de tropas e armamentos na guerra do petróleo. E também para criar um inimigo que nos aterroriza. Porém, o pior terror é o da ignorância. É tempo de lutarmos, não por estes mas sim por valores humanistas portadores de um futuro melhor. Haverá que cortar algumas árvores que entretanto cresceram e nos assombram a vista. Não fazem falta! Temos de ter a noção da floresta.

(Paris, um mês após Charlie Hebdo)

Professor universitário, físico

 

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