“Não me apaziguo”

No livro de contos Meninas, Maria Teresa Horta traça e explora uma espécie de cartografia pessoal, na qual ela própria se desvenda num jogo de revelações e ocultações que faz desta obra uma misteriosa charada

Foto
Maria Teresa Horta nunca perde o seu rasgo inconfundível, numa obra em que é quase impossível separar o imaginário do real, a ficção romanesca da liberdade poética

Maria Teresa Horta é uma autora ímpar. A sua singularidade assenta em vários factores, nos quais se incluem uma linguagem inconfundível, fluida e apaixonada, um imaginário riquíssimo, uma vasta cultura humanista — de raízes clássicas — e uma capacidade invejável de escrever continuamente, sem limites nem amarras, reinventando em cada linha as mais profundas e inefáveis questões que desafiam — e angustiam — a humanidade. 

Rebelde, inconformada e iconoclasta, Maria Teresa Horta acaba de publicar um livro de contos, constituído por um conjunto de textos que se vão desenrolando num crescendo de emoções, imagens, memórias, momentos, servidos por uma voz encantatória e com tonalidades proféticas. 

Apesar de ser mais conhecida — e detalhadamente estudada — pela sua obra poética, Maria Teresa Horta tem regressado ocasionalmente à prosa (a partir de 1970, comAmbas as Mãos sobre o Corpo, reeditado recentemente), como se lhe fosse necessária essa incursão, como forma de “balanço” ou reflexão. E se na monumental e esplendorosa biografia de Leonor de Almeida (As Luzes de Leonor, ed. Dom Quixote) desfia os factos, alternando entre o privado e o público, entre a emoção e a razão, entre o feminino e o masculino num universo que abarca tanto os mínimos detalhes como uma visão amplificada desse “Século das Luzes” que definiu a nossa civilização, emMeninas traça e explora uma espécie de cartografia pessoal, na qual ela própria se desvenda num jogo de revelações e ocultações que faz desta obra uma misteriosa charada. Porque é sobre ela própria — sobre a “menina” que ela é, e que abarca o mundo maravilhoso de tantas outras “meninas” que a habitam — que Maria Teresa Horta escreve, criando personagens que, de tão próximas da autora, lhe povoam o tempo e o espaço de mitos e símbolos, de linhas da sorte, de sulcos abertos, de clarões ofuscantes, de memórias antiquíssimas que canalizam as emoções e os pensamentos que a avassalam. A autora colige uma espécie de “canções de experiência e de inocência” — remetendo para os poemas visionários de William Blake — e para a fantasmagoria de um universo que tudo contém, matéria e espírito, erotismo e morte, memória e esquecimento. 

Companheira de poderosas escritoras como Clarice Lispector, Sylvia Plath, Hilda Hilst, Christina Rossetti ou Elizabeth Barreth-Browning, Maria Teresa Horta deixa-se contaminar por esta herança ardente, sem nunca perder o seu rasgo inconfundível numa obra em que é quase impossível separar o imaginário do real, a ficção romanesca da liberdade poética. Maria Teresa Horta é enfática quando reitera o uso de “palavras, e depois palavras e depois das palavras… as palavras dos versos”, marcando o ritmo, o desfiar de sons, numa melopeia encantatória. 

Na impossibilidade de referir todos os contos, um a um, note-se que o primeiro texto remete para Lilith, essa figura mitológica, com origens na Mesopotâmia que se insinua em textos sagrados judaicos — seria ela a primeira mulher na Terra, feita do mesmo barro que Adão e não uma excrescência do ser masculino, como Eva — mas que foi rechaçada com violência ou simplesmente relegada para a sombra. Maria Teresa Horta marca, com ela, o início de todas as coisas, o nascimento, o magma primordial, prolongando a ideia da feminilidade triunfal no texto Daninha, ligado à grande deusa Deméter, essa “mãe-terra” que providencia, que orquestra os ciclos da Natureza, continuando, em Recém-Nascida, a lembrança nebulosa de um repúdio a que “outra menina” responde com Desobediência, a recusa precoce em se deixar dominar. Os textos seguem-se, acompanhando as múltiplas metamorfoses — algumas doces, outras brutais — de um “eu” feminino que se rebela, que levita, que fala com anjos e que reconhece os clarões de luz a rasgarem as trevas da submissão, da ignorância e da humilhação. Na condição de “meninas”, todas elas mães, filhas, irmãs, avós, próximas ou distantes, e até mesmo as figuras reais” — a rebelde Carlota Joaquina, a leitora insaciável, Katie Lewis, pintada por Burne-Jones, a sanguinária condessa húngara Elizabeth Báthory, obcecada pela sua própria beleza — ganham especial relevo nas suas relações conturbadas, marcando uma linhagem de paixões arrebatadas e ódios intempestivos.

Assim, Meninas poderá ser lido como uma sequência de contos que subvertem os modelos tradicionais e que constituem, também, uma espécie de dicionário (no sentido original de aglomerado de palavras ao qual é dado uma certa ordem) da condição feminina. Estas marcantes figuras — sempre em contraponto ou mesmo em luta aberta com o ser masculino — são assombrações, prodígios, guerreiras e sobreviventes, deusas, figuras históricas e projecções autobiográficas, matéria primordial de mitos e lendas. 

Parafraseando a sua antepassada Leonor de Almeida, também ela uma grande dama das Letras, Maria Teresa Horta, com mais esta obra, reclama bem alto: “Não me apaziguo!”

Sugerir correcção
Ler 1 comentários