Eles não perceberam a piada
1. Se houver um céu dos cartoonistas e se os do Charlie Hebdo estiverem deitados na nuvem a olhar cá para baixo, não podem ter deixado de se interrogar, ao ver as manifestações de domingo, com tantos dos políticos com quem eles gozaram a reclamar-se Charlie: “O que teremos feito mal?”. E não podem ter deixado de se perguntar isso porque Charlie nunca procurou consensos, sempre desconfiou dos consensos e sempre desafiou os consensos. Sempre foi esse o papel de Charlie e é isso que devemos a Charlie: a sua iconoclastia, a sua capacidade para nos desafiar a nós e aos outros, cruzando inúmeras vezes as fronteiras do bom gosto e do bom senso, garantindo sempre que a liberdade não ficaria refém do preconceito ou das conveniências.
3.
A grande palavra de ordem em França, após os ataques da semana passada em Paris, para além das profissões de fé na liberdade de expressão e das declarações de solidariedade com as vítimas, é o “não à amálgama”, para usar a expressão canónica do discurso político francês. Que “amálgama”? A identificação entre muçulmanos e islamistas terroristas, a identificação entre islão e violência, entre islão e anti-semitismo.
E toda a cobertura das impressionantes manifestações de domingo passado sublinhava a presença lado a lado de pessoas de diferentes religiões e sem religião, gritando as mesmas palavras de ordem e provando que não só é possível às várias confissões, nacionalidades e culturas viver lado a lado em paz, como esse é um dos desejos mais ardentes dessas pessoas e a herança que querem deixar aos seus filhos.É evidente que a esmagadora maioria dos muçulmanos do mundo, vivam onde viverem, não apoia o terrorismo. Sabemos como os próprios muçulmanos chiitas são as principais vítimas de movimentos terroristas sunitas como a Al-Qaeda e o auto-denominado “Estado Islâmico”. Posto isto, não se pode ignorar que o terrorismo islamista é um fenómeno emergente numa franja de uma determinada comunidade religiosa que não fez o aggiornamento religioso que outras comunidades islâmicas fizeram (podem encontrar-se receitas de crueldade nos textos religiosos de todos os credos, mas a maior parte dos crentes não as aplicam), da mesma forma que não se pode esquecer que existe um problema particular de integração dos jovens muçulmanos em geral nas sociedades ocidentais. O islão não defende o terrorismo, mas o terrorismo islamista constitui um problema que possui uma evidente base religiosa e tem de ser discutido também nesse contexto. O terrorismo islamista não é a emanação natural de uma dada cultura, mas também não é um mero caso de polícia.