Pescar lulas em Lisboa

Damon McMahon, o líder dos Amen Dunes, passou um mês em Lisboa a compor o sucessor de Love. Na realidade não escreveu uma nota. Esteve a pescar lulas. Com um walkman por companhia e três folhas brancas.

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TUOMAS KOPIJAAKO

São três folhas brancas, dobradas em quatro até ficarem tamanho A6 e puídas nos seus vincos e cantos de tanto roçarem o interior do bolso do casaco de Damon McMahon.

Estão escritas de fio a pavio, com pequenas frases que ora são potenciais versos, ora possibilidades de arranjos. É um manual de como pescar lulas – e simultaneamente o novo disco dos Amen Dunes, o sucessor do magnífico Love: três folhas escrevinhadas em Lisboa. Não soa muito promissor, pois não? Descansem: é assim que o rapaz trabalha.
Era fim de Dezembro quando nos sentámos à conversa com ele numa pastelaria em Lisboa, estava ele cá há um mês – e na pastelaria há meia-hora, à nossa espera, derivado greve do metro. Quando chegámos, esforçou-se por esconder o livro que estava a ler, Dream Brother, relato da relação entre pai Buckley e o filho Jeff. Só mais tarde conseguimos pô-lo a falar sobre o assunto.
“É uma espécie de guilty-pleasure meu”, explica, enquanto tenta perceber o que se passa com o seu cartão do metro, que não funciona. No momento em que o cartão encrava começa a ficar nervoso: tem uma consulta no médico e quer chegar a horas.
“Para ser honesto, nunca ouvi o Jeff com muita atenção”, conta, já na carruagem. “É demasiado pop para mim. Mas o meu baterista foi o baterista dele e”, faz uma pausa, “não é fácil, torna-se um assunto pessoal”. Além disso, diz, “a obra do Tim é-me tão próxima que o sinto quase como um pai, pelo que não consigo evitar querer saber mais”.
É verdade que lhe é mais fácil falar de Tim. Tão fácil – em particular tendo em conta que até há bem pouco tempo a obra de pai Buckley era dificílima de encontrar – que se torna claro algo que já desconfiava há muito: Damon é um nerdzinho da música. Com pelo menos três pais: “Nem me fales do Bob Dylan, meu, o Dylan é o meu pai”, diz a dada altura; “O Van Morrison? Nem sei como explicar a relação que tenho com ele. É como se fosse família, é como se fosse o meu pai”, afiança, quando lhe tento explicar que o parente mais próximo que encontro para Love é Astral Weeks; e depois vem o assunto-Buckley e por entre dezenas de afirmações sobre o sr Tim – como: “Já reparaste que ele consegue fazer vibrato durante um falsete após subir quatro oitavas?” – lá chega o proverbial “Ouvi tanto o Tim Buckley que é como se ele fosse meu pai”.

Lisboa/Nova Iorque
Dan McMahon é o líder dos Amen Dunes, autores do sensacional Love, editado o ano passado. A banda, na realidade, é composta de McMahon e dos músicos que estiverem a jeito quando ele precisa de companhia – para Love foram recrutados elementos dos Godspeed You Black Emperor!, mas a maior parte da obra dos Amen Dunes foi concebida apenas com a voz e a guitarra de McMahon gravada directamente para fita.
Na realidade só há mais dois discos oficiais, DIA (2009) e Through Donkey Jaw (2011), realizados da seguinte forma: “Eu ligava o gravador e, sem ter nenhuma canção composta, tocava e cantava a primeira coisa que me viesse à cabeça”. Era uma forma de vencer o writer’s block, de “vencer o medo de as coisas não ficarem bem”: fazia e pronto. Não é um método assim tão estranho: quando procuramos em demasia o equilíbrio, tendemos a acabar por praticar actos extremos.
Love foi o primeiro disco escrito antes de ser gravado e de imediato chegou a uma imensidão de pessoas, ou pelo menos à imensidão de pessoas necessárias para haver digressões e o disco acabar no topo das listas de melhores do ano de um sem número de publicações. Ele tinha imaginado um disco de jazz espiritual, ficou uma espécie de folk psicadélica: um Astral Weeks menos estonteante.
De modo que “em Outubro [do ano passado] toquei na ZDB [em Lisboa] e senti uma vibração tão boa que a meio do concerto disse, por brincadeira, que queria vir morar para Lisboa e no fim uma rapariga veio ter comigo e ofereceu-me o seu apartamento”. A moça ofereceu o apartamento e numa altura em que não estaria em Lisboa. Damon, por sua vez, arrendou o seu em Nova Iorque. E assim acabou a passar um mês por cá; sem nada para fazer, escreveu um disco. E por escrever entenda-se mesmo escrever: não há uma única nota anotada por enquanto.
E é por esta altura que começamos a desconfiar que McMahon não funciona de acordo com as regras do mercado nem tem uma única palavra a dizer sobre os benefícios do trabalho: só toca guitarra quando sente “inspiração”; quando esta surge pega no instrumento e grava tudo o que lhe sai; o resultado fica em centenas cassetes que repousam até sentir a urgência de fazer novo disco. “Sou como um pescador de lulas”, diz: “Tenho de esperar e esperar e quando sinto o puxão é hora da inspiração e com a inspiração não se brinca: quando chega atiramo-nos a ela e temos de estar abertos a tudo”.
“Eu trouxe a minha guitarra mas escrevo de forma esquisita”, continua, após um golo numa “copa dê água”. “Não me sento a escrever ou a compor, é um processo mais mental. Começo por imaginar uma moldura, fronteiras, barreiras, conceito do que não posso fazer e, dentro dos limites que me imponho, o que me é possível”.
Hence, as três folhinhas amarfanhadas às quais se agarra ao ponto de a dada altura acabarmos numa cena caricata: eu a esticar o pescoço para tentar lê-las e ele a recuar as folhas: “Não, não podes ler”. “Oh, vá lá”, e ele aquiesce e levanta de novo as folhas, mas quando re-estico o pescoço ele recua de novo: “Não, é melhor não, não me sinto bem com isto”. A cena repetiu-se o número suficiente de vezes para ter ficado com a impressão de isto ter sido o mais perto que estive, em anos, do sexo adolescente.
O processo de composição de McMahon só se inicia quando ele começa a ficar ansioso: nessa altura dedica todas as horas do dia à escuta das mencionadas cassetes em que arquiva os assomos de inspiração. “Quando decido fazer um disco, pego nas cassetes todas e passo o tempo a ouvi-las à procura de algo que goste, me inspire, me faça dizer ‘É por aqui’”. Tem as chaves da ZDB, para tocar quando quiser, mas por esses dias ainda não tinha pegado na guitarra.
Ouve as cassetes “enquanto passeia” e vai escrevinhamdo ideias à medida que algo (como não podia deixar de ser) o inspira. Por isso é que Lisboa é importante. É que para compor precisa de sair de Nova Iorque – aliás, “um tipo deve sair de Nova Iorque sempre que pode”. Porque “Nova Iorque não é como Lisboa; não é uma cidade onde ao fim-de-semana as pessoas vão almoçar com a família. A percentagem de pessoas que têm em família em Nova Iorque [Damon é natural de lá e os seus pais ainda moram lá] é escassa. A maior parte das pessoas vai para lá para alcançar os seus sonhos. É um sítio para pessoas ambiciosas, aquele tipo de pessoas para quem conhecer outro ser humano é networking e odeio isso”.
Portanto, Lisboa: uma cidade “mais pequena e acolhedora” onde pode andar de auscultadores ligados a um walkman o dia todo, “à espera que a inspiração chegue” e cada vez que ouve algo que lhe interessa aponta nas folhinhas. E “quando está tudo escrito, tudo decidido na [sua] cabeça” ele fica “à espera que a inspiração chegue”, frase que repete sucessivas vezes, e então finalmente pega nos instrumentos e grava.
Não se iludam, isto não é tão ingénuo quanto parece: no momento em que decide gravar sabe tudo o que quer, o exacto som que pretende ouvir, os arranjos precisos e o momento em que entram.
Portanto: ele precisa de fugir de Nova Iorque, cidade em que tudo é networking, para encontrar “um sítio mais puro”. A sua relação com a folk é “mística”, ao ponto de sentir que foi “parido pela própria folk” e que os velhos mestres são os seus pais. E recusa-se a trabalhar na sua arte, limitando-se “a rezar para que a musa regresse”. O bottom-line desta pesca à lula é que McMahon é o último dos românticos sofridos.
Claro que há nisto um paradoxo: pode não acreditar no trabalho, mas as horas que passa a tocar quando chega a “inspiração” seriam qualificadas, por outros músicos, como trabalho. O seu conhecimento exaustivo da folk pode, para ele, ser apenas a sua paixão – mas outros músicos considerá-lo-iam uma forma de aprendizagem da craft.
E quando dá os seus passeios pela cidade a ouvir cassetes, acto que ele qualifica como “uma forma de passar o tempo sem sentir ansiedade”, não serão - aham - trabalho? Por último: esta coisa de anotar toda a santa ideia em letrinha miudinha numas folhas gastas não se qualificará, porventura, como - aham - trabalho?
Pouco importa: ele põe-se nas mãos da inspiração. “Quando a inspiração chega ponho-me a tocar”, repete e depois fica à espera de sentir “aquela ansiedade de fazer alguma coisa”. Se por acaso o viram pela cidade, de auscultadores no ouvido, fiquem a saber que isto é Damon McMahon à espera da inspiração. Ou a pescar lulas. Já estamos com gula pelo próximo repasto.

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