Novo prémio de cosmologia co-atribuído a cientista portuguesa

Por que é que o passado é sempre diferente do futuro? Por incrível que pareça, as teorias físicas actuais não respondem a esta simples pergunta. O trabalho dos dois galardoados propõe uma nova forma de encarar o problema.

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A cosmóloga portuguesa Marina Cortês Nuno Ferreira Santos

O Prémio Buchalter de Cosmologia foi atribuído conjuntamente à cosmóloga portuguesa Marina Cortês, do Observatório Real de Edimburgo (Reino Unido) e do Centro de Astronomia e Astrofísica da Universidade de Lisboa, e ao conhecido físico teórico norte-americano Lee Smolin, do Instituto Perimeter (Canadá). Nesta primeira edição do galardão, os dois cientistas foram recompensados “pela sua notável abordagem que visa reintroduzir o fluxo irreversível do tempo nas fundações da física”, anunciou o júri do prémio, esta terça-feira, no congresso da Sociedade Americana de Astronomia, a decorrer em Seattle (EUA) de 4 a 8 de Janeiro.

Mais precisamente, Cortês e Smolin foram premiados pela co-autoria de um artigo intitulado “O Universo enquanto processo de eventos únicos” (The Universe as a Process of Unique Events). O trabalho, que fora inicialmente publicado em Julho de 2013 no arxiv.org (um site onde físicos e matemáticos submetem os seus resultados à avaliação informal dos seus pares), teve publicação “oficial” na revista Physical Review D em Outubro 2014.

Entrevistada pelo PÚBLICO no início de Dezembro, Marina Cortês explicava assim as investigações que está a desenvolver com Lee Smolin: “Queremos descobrir por que é que o tempo está sempre a avançar e nunca recua. É uma pergunta muito razoável. O Universo no seu conjunto evolui de uma forma que é irreversível.”

Ora, apesar de todos sabermos que essa direccionalidade do tempo rege tudo o que nos rodeia – que, dos mais pequenos seres vivos às galáxias, tudo envelhece, que nada “desocorre” –, “a física é a única ciência em que todas as leis funcionam tanto para a frente como para trás, porque as nossas equações não incluem a direcção do tempo”, acrescentava a cosmóloga. E salientava que “essa é uma das razões por que é tão difícil desenvolver uma teoria da gravidade quântica” – isto é, uma teoria que descreva a gravidade em termos de física quântica –, “que é o Santo Graal da física” e é algo que os físicos estão a tentar fazer há décadas.

O trabalho destes dois cientistas, lê-se num comunicado do Instituto Perimeter acerca do prémio que agora recebem, “fornece um novo ponto de partida para se conseguir resolver grandes questões como a maneira de unificar a física quântica com a relatividade e a gravidade [ou] de explicar por que o futuro é diferente do passado”.

O júri do prémio é constituído por especialistas mundialmente conhecidos: o também português João Magueijo (do Imperial College de Londres) e os norte-americanos Sean Carroll (Caltech, EUA) e Bob Caldwell (Dartmouth College, EUA).

“O tempo não é uma ilusão”

Uma das conclusões a que os dois autores chegaram no artigo agora premiado é que o espaço-tempo, tal como o conhecemos através da teoria da relatividade, não é em si um componente fundamental, um componente de base do Universo.

O que quer isto dizer? Marina Cortês respondeu-nos por email, começando por fazer notar que “por exemplo, na física tradicional, quarks e electrões são partículas fundamentais no sentido em que não se podem dividir em partes mais pequenas.” Ora, pelo contrário, “se usássemos uma lupa para ver o espaço-tempo de muito – muito – perto, veríamos que é feito de elementos (que nós chamamos eventos no nosso artigo) que não são nem espaço nem tempo.” Portanto, o espaço-tempo pode, afirmam, ser ainda dividido em partes mais pequenas.

Mas se não são nem espaço nem tempo, o que são esses elementos (eventos) fundamentais do Universo que, ao se juntarem, criam o espaço-tempo? “São instantes de tempo”, diz Marina Cortês. “Tal como um relógio faz tique-taque, podemos imaginar que o tempo é uma máquina que produz instantes de tempo, um após o outro, após o outro... Cada instante é um desses eventos. E o que nós dizemos é que não é possível usar uma lupa para decompor os instantes de tempo em partes mais pequenas. São a coisa mais simples que existe e são a parte mais importante do Universo. E tudo o que nós vemos e observamos é feito destes instantes de tempo.”

Por outras palavras, ao contrário do que estipulam as teorias físicas convencionais, o espaço-tempo seria, assim, apenas “uma descrição aproximada de uma sequência de eventos gerados no tempo”, como se lê ainda no comunicado do Perimeter. E como o tempo, por sua vez, “é uma actividade que gera eventos futuros novos a partir de eventos actuais”, isso tornaria o Universo fundamentalmente assimétrico no tempo, com o futuro “a crescer irreversivelmente a partir do presente e totalmente diferente do passado”.

“Em geral, as teorias de relatividade quântica dizem que o tempo não existe, que não é real!”, exclama Marina Cortês. “Que é uma ilusão no sentido em que é constituído por partes mais pequenas que não são tempo. Nós dizemos que é o tempo que é fundamental, ou seja que é o tempo que é mesmo real. Este é o ingrediente essencial da nossa teoria. O espaço é uma ilusão (e nisto nos concordamos com as outras teorias), mas o tempo é fundamental.”

Uma última pergunta parece impor-se: se o Universo é feito de “instantes de tempo”, onde estão o espaço, a matéria? “É muito difícil chegar lá, mas estamos a avançar. Com este nosso primeiro trabalho, já conseguimos construir o espaço-tempo [a partir dos instantes de tempo]”, responde.

“Em dois artigos subsequentes já mostrámos também que podemos ligar o nosso trabalho a resultados existentes em relatividade quântica, uma teoria que já fez avanços no sentido de adicionar matéria ao espaço-tempo.”

E conclui: “Pelo nosso lado, estamos neste momento a trabalhar numa formulação das equações de Einstein que incorpora o facto de o tempo ter uma direccionalidade. Se conseguirmos fazer isto, será muito fácil estender o nosso modelo para incluir também a matéria.”

Cosmologia interessa a todos

Voltando ao prémio, foi criado em 2014 por Ari Buchalter, ex-físico e actual presidente da MediaMath, uma empresa norte-americana de tecnologias avançadas de marketing. Buchalter “nunca deixou de se interessar pela cosmologia teórica, o que é totalmente adequado, uma vez que a forma como o nosso Universo funciona é algo que deveria interessar toda a gente, seja qual for a sua profissão”, escrevia há um ano Sean Carroll no seu blogue http://www.preposterousuniverse.com/

O objectivo do prémio, aberto inclusivamente aos estudantes de doutoramento e pós-doutoramento em cosmologia ou astronomia, é “promover o pensamento inovador em cosmologia experimental e teórica”. O galardão é anual, é atribuído aos melhores artigos de cosmologia publicados no arxiv.org – e tem três “escalões”, com respectivos montantes de 10.000, 5000 e 2.500 dólares.

O primeiro lugar no pódio do prémio inaugural foi agora ganho por Cortês e Smolin. O segundo é ocupado por Jonathan Kaufman e Brian Keating, da Universidade da Califórnia, e Brad Johnson, da Universidade Columbia, por um trabalho intitulado “Precision Tests of Parity Violation Over Cosmological Distances” e considerado pelo júri como “uma proposta engenhosa para melhorar significativamente as medições da polarização da radiação cósmica de fundo, permitindo novos testes potenciais de física fundamental”.

Por último, receberam o terceiro prémio Carroll Wainwright, Universidade da Califórnia e os seus co-autores por um artigo intitulado “Simulating the universe(s): from Cosmic Bubble Collisions to Cosmological Observables with Numerical Relativity”, publicado na revista Journal of Cosmology and Astroparticle Physics e reconhecido pelo júri como “um passo importante no sentido de ligar as previsões teóricas a assinaturas potencialmente observáveis de universos-bolha numa cosmologia de multiversos”.

“É uma grande, grande honra receber este prémio. Diz respeito a um trabalho que levamos especialmente a peito. As ideias que contém são muito diferentes daquelas que costumam ser aceites nesta área e tivemos de ganhar coragem e determinação para enunciar os nossos pontos de vista. O facto de vermos essas ideais reconhecidas pelos nossos mais estimados pares constitui uma recompensa inimaginável”, diz Marina Cortês. “Comprometemos a nossa reputação científica ao ousar trabalhar em ideias tao diferentes. Mas em vez de sermos criticados, fomos recompensados com um prémio!”

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