Maurice Duverger (1917-2014)

Maurice Duverger foi o grande inspirador do "regime semipresidencial" da Constituição francesa de 1958 e da V República, o que permitiu muitas glosas, designadamente para a situação portuguesa.

A notícia da morte de Duverger passou quase despercebida, contratastando com a grande influência que teve sobretudo nos anos 50 a 70.

Professor em Poitiers (1942-1943), Bordéus (1943-1955) e em Paris-I (1955-1985), foi aí o grande animador do Instituto de Estudos Políticos da rue de Saint-Guillaume. Depois de 1946, a forte ligação ao diretor do Le Monde, Hubert Beuve-Méry, permitiu-lhe encontrar uma tribuna que se tornou decisiva para a transição do parlamentarismo da IV República para a solução encontrada em 1958 com o General De Gaulle. Em 1951, o seu labor jurídico foi fundamental para que Beuve-Méry tivesse mantido a linha editorial de independência que defendia, não se hipotecando às fragilidades da IV República. Entre 1946 e 1994 assina cerca de oito centenas de textos, que foram mais influentes do que muitas das suas lições académicas. Duverger compreendeu bem que o magistério universitário não podia ater-se apenas à cátedra, tinha de chegar aos cidadãos, não com textos inócuos, mas com uma reflexão fundamentada e acessível. O seu precoce pendor de publicista valeu-lhe acusações, que sempre negou, de colaboração com o regime de Vichy. No entanto, é insofismável que o volume de sua autoria na coleção Que sais-je? das P.U.F. editado em 1943 sobre Les Constitutions de France foi proibido porque afirmava que o governo de Pétain "não era um governo de direito, mas um governo de facto"  ou seja, negava que respeitasse a legalidade… Os partidos políticos, a representação cívica e os sistemas eleitorais interessaram-no sobremaneira – sempre na perspetiva de aperfeiçoar a representação, completando-a com o exercício, o equilíbrio de poderes e a cidadania ativa.

Maurice Duverger foi o grande inspirador do "regime semipresidencial" da Constituição francesa de 1958 e da V República, o que permitiu muitas glosas, designadamente para a situação portuguesa. No entanto, o caso português regista diferenças significativas que levam a ter de ser classificado apenas como de parlamentarismo racionalizado – próximo da Áustria e da Finlândia. A legitimidade presidencial encontra-se, de facto, diminuída na nossa Constituição de 1976, uma vez que, havendo empate de votos na Assembleia da República, o veredicto faz prevalecer numa segunda votação a decisão negativa, contrária à posição do governo. Isto significa, afinal, que a lição de Duverger, que visava a estabilidade governativa, não foi seguida no nosso caso, já que tudo se passa como se a legitimidade fosse apenas parlamentar. Ao invés, o "regime semipresidencial" concebido por Duverger, pressupõe uma chave de legitimação dupla, presidencial e parlamentar. Daí que a Constituição francesa preveja a figura da "questão de confiança" ou "compromisso de responsabilidade" no artigo 49, que permite ao governo suscitar em casos específicos (como as leis do orçamento e da segurança social e uma iniciativa por sessão legislativa, de acordo com a lei constitucional de 23 de julho de 2008) a aprovação de uma moção de censura que exige a maioria dos votos dos deputados. Duverger ensinou, assim, que, além da separação e interdependência de poderes, deveria haver uma chave de segurança, para garantir o respeito da lógica complexa do sistema constitucional – já que a legitimidade do governo provinha de duas fontes democráticas: a presidencial e a parlamentar. Esta perspetiva permitiria uma articulação efetiva entre as legitimidades de origem e de exercício, garantindo, mais do que a racionalização do parlamentarismo, a salvaguarda da influência do que Benjamin Constant designou como "poder moderador" e que teve expressão mitigada na nossa Carta Constitucional de 1826 (em especial, depois de 1852). A releitura ponderada de Duverger nos dias de hoje merece ser feita, uma vez que a qualidade da democracia é o grande desafio dos Estados de direito modernos. Não há sistemas acabados ou perfeitos e a reforma das instituições obriga ao gradualismo e à consideração da experiência. As vantagens da reflexão do professor francês devem-se, deste modo, a um conhecimento muito seguro, rigoroso e panorâmico do direito comparado e da ciência política.

Universitário, jornalista, editor, polemista, ensaísta, deputado europeu nas listas dos democratas italianos, Duverger legou-nos uma obra fundamental, para além dos Manuais – desde Introdução à Política (1964) até Lebre liberal e tartaruga europeia (1990), passando por Janus: as duas faces do Ocidente e A Monarquia Republicana. Mais do que constitucionalista, Maurice Duverger foi um cientista político pioneiro que soube estabelecer um fecundo diálogo (nada fácil) com o direito público, longe do formalismo e indo ao encontro do aperfeiçoamento necessário da vida democrática. A força e a vitalidade do constitucionalismo dependem da capacidade de compreensão das dinâmicas de mudança – aí está a originalidade do contributo do influente mestre do Direito.

Presidente do Tribunal de Contas

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