O ano começa com um esplêndido arco-íris traçado por Panda Bear

Ele diz que é como se o novo álbum constituísse o encerrar de uma trilogia que reflecte a sua vida em Lisboa ao longo de dez anos. Já houve a excitação da novidade e a desaparição dessa sensação. Agora, em Panda Bear Meets The Grim Reaper, o americano Noah Lennox diz que é tempo de aceitar e de apreciar o que foi descobrindo na cidade.

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FERNANDA PEREIRA
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É um dos álbuns mais aguardados deste início de ano. Panda Bear Meets The Grim Reaper, quinto disco a solo de Noah Lennox para lá do grupo Animal Collective, sai já no próximo dia 12.

Trata-se de mais uma obra magnífica de Panda Bear. Mais solar que o anterior Tomboy (2011) e tão assente na bricolagem sonora de contornos pop como Person Pitch (2007), com letras que examinam as relações humanas a partir dessa ideia central de que morremos e renascemos várias vezes ao longo da existência.

É um esplêndido arco-íris aquele que nos dado a ver, uma folia psicadélica que desmascara cores atrás de cores, num efeito de encanto multidimensional. É um álbum de canções beatíficas, possuídas por uma lógica interna precisa, apesar das ondas sonoras abstractas que as envolvem, e por cânticos comunitários que nascem serenamente a partir de mil sons.

No ano passado, os Daft Punk foram resgatar a sua voz para uma das canções do seu último álbum e não foi por acaso. Ritmos, melodias e ruídos estão mais apurados do que nunca, formando uma pop electrónica caleidoscópica, mas é ainda a sua voz celestial, trabalhada pelo meio dos ecos e das reverberações, que continua a fascinar. A 11 de Março, no Teatro Maria Matos, em Lisboa, e a 12, no GNRation de Braga, haverá concertos.

Em Lisboa, onde já vive há quase dez anos, vindo de Nova Iorque, via Baltimore, a cidade natal, falámos com ele.

De que maneira é que estar aqui a reflectir e a discorrer sobre o seu novo álbum, pouco tempo depois de o ter finalizado, transforma a relação que teve com o mesmo?

Transforma muito. É engraçado porque, quando estou a criar, executo a maior parte das decisões de forma instintiva. Mas depois, neste processo de falar sobre o que foi feito, vou-me interrogando e acabo por compreender muitas coisas para as quais não tinha resposta, porque também não as procurei, é certo. O processo de entrevistas é curioso. Tento não me repetir nas respostas e acabo por ir escavando mais fundo. E é interessante perceber que por trás daqueles movimentos intuitivos existia uma razão que não entrevia à primeira vista. Acaba por ser uma forma de autoconhecimento.

E nunca partiu para um álbum ao contrário, principiando com um conceito definidor e a meio do processo essa ideia acabar por sofrer uma grande transformação?

Sim, também já me aconteceu. É muito raro ter a antevisão de qualquer coisa e no final do processo o resultado acomodar-se a essa fantasia inicial. Existem sempre aspectos dessa ideia inaugural que se mantêm, mas muitos desses elementos perdem-se pelo caminho porque concluo que não funcionam. Normalmente começo por alguns objectivos pré-determinados, penso em algumas ideias, imagino o equipamento que vou usar, o tipo de canções que quero compor, quais os assuntos sobre os quais quero escrever e os títulos das canções e do álbum. E depois algumas dessas coisas chegam ao fim e outras não. É como atirar conceitos, imagens e sonhos para uma parede branca e a partir daí ir criando qualquer coisa que faça sentido. É mágico quando começamos com um motivo, ele se desenvolve imprevistamente e acaba por fazer sentido no fim.

No caso específico do novo álbum existiu algum momento definidor que acabou por contaminar o resto do processo?

Tudo começou com motivos rítmicos e com elementos percussivos. Isso ditou em grande medida todo o restante processo de composição das canções e até o seu carácter final. Por norma gosto de me colocar em situações de algum desconforto e onde não tenha total controlo sobre os procedimentos, dessa forma colocando-me em causa. Acaba por ser uma maneira de não me repetir. Nos primeiros seis meses de cada canção trabalho apenas padrões rítmicos e alguns elementos sonoros, de forma a criar um ambiente para as cadências iniciais. É quase como ir adicionado peças de Lego até chegar à estrutura da canção. Depois vou ouvindo com insistência o que criei para adicionar as partes vocais no final do processo.

Fala mais como um escultor de ambientes, um criador de climas e tensões, do que propriamente como compositor convencional de canções. Como é que se vê a si próprio?

Algumas pessoas têm um cuidado especial com as palavras, outras com os ingredientes instrumentais. Tento encontrar um equilíbrio entre as duas dimensões, mas ter começado como baterista acabou por ter um papel muito definidor no meu percurso. A minha aproximação às canções é materializada a partir do ritmo. A minha forma de cantar, e as palavras, acabam por conter também um apelo rítmico, encaixando-se nele.

Aquando do lançamento do álbum Person Pitch referia que os Nirvana ou Frank Sinatra haviam sido uma inspiração. Mas depois ouvia-se o álbum e essas referências não era facilmente descortináveis. Agora diz-se marcado por algum hip-hop dos anos 1990 mas isso também não é muito perceptível.

São pontos de partida, instintos, elementos que vou recolhendo sem crivo. Gosto de um certo caos. De maneira nenhuma são tentativas de fazer à maneira deste ou daquele. Mas é verdade que alguns elementos rítmicos deste álbum são muito inspirados no tipo de produção utilizada em algum material de DJ Premier, Pete Rock, 9th Wonder ou Jay Dee.

Neste álbum voltou a trabalhar com Peter Kember (Sonic Boom) na co-produção. Como descreveria essa relação?

Tanto eu como ele gostamos de reduzir as coisas aos seus mais vitais elementos. Nesse sentido estamos no mesmo comprimento de onda, o que ajuda. As nossas aptidões são diferentes, embora se complementem. Eu tenho uma relação mais imediata com a música, sou sensível aos aspectos mais emocionais, enquanto ele consegue ser mais clínico e ter uma perspectiva mais detalhada dos sons. Funcionamos bem assim. Estava um pouco receoso de voltar a trabalhar com ele, não porque não tivesse sido óptimo da primeira vez, mas porque tenho a preocupação de não me repetir e isso poderia acontecer. Mas depois de ter composto algumas canções percebi de imediato que o material era muito diferente e tê-lo envolvido no processo, muito mais cedo do que da primeira vez, foi esclarecedor.

Dizia que necessita de se reinventar sonicamente de álbum para álbum, obrigando-se a pôr-se em causa. No caso das letras das canções também precisa desse desafio? Escreve com facilidade ou é qualquer coisa que lhe é trabalhosa?  

Foi mais fácil desta vez do que em muitas circunstâncias do passado. Antes usava a introspecção como ferramenta, na esperança de escrever qualquer coisa que fosse apreensível ou útil para alguém, no sentido de gerar um efeito de identificação. Quase como um diário. Mas recentemente – apesar de achar que a introspecção pode ser algo de bom – comecei a colocar essa ideia em cheque, porque existe uma linha divisória que é facilmente ultrapassável e a introspecção pode transformar-se em narcisismo. Ser pai de dois filhos acabou por me tornar também menos autocentrado. No caso deste disco senti que estava a escrever sobre coisas que não eram apenas minhas. Eram coisas mais globais ou universais. E por causa disso não tive tanto receio de me expor. No passado sentia algum receio em revelar coisas sobre mim próprio, mas desta vez senti-me muito mais livre e descomprometido.

Todos os seus álbuns se jogam numa dupla dimensão, com canções intimistas, mas também com qualquer coisa de celebração comunitária. Neste disco não é diferente. Mesmo baladas ambientais como Tropic of cancer ou Lonely wanderer têm um lado mágico e luminoso, afastando-se do posicionamento mais sombrio do anterior. Como é que o vê?

É um álbum de paradoxos. O disco anterior era mais austero. Neste caso, logo a partir do título do disco, quis desfazer isso, como se fosse uma personagem de BD, com qualquer coisa de grotesco, de difícil digestão, mas também com qualquer coisa de divertido e burlesco. Gosto de pensar que as canções conseguiram captar essa dupla dimensão. Admiro música séria que consegue ser divertida. Foi por aí.

Afirmou que o álbum espelha também o facto de já não ser um adolescente. Nesse sentido constituiu um olhar retrospectivo sobre a sua vida, agora, que está com 36 anos?

Olho para ele mais como uma metáfora, uma espécie de visão ou de sonho. É como se até aqui tivesse subido de forma contínua até ao cimo da colina e não vislumbrasse o resto da montanha, quase como se não fosse real, mas soubesse que ela está lá. Agora sinto que estou no cimo da montanha, com suficiente visibilidade para descortinar o caminho que já percorri, olhando lá para baixo. É a primeira vez que não estou ansioso para trepar, o que não é necessariamente mau, mesmo estando expectante para ver o que se passa do outro lado.

Na mitologia do rock & roll os vintes são encarados como uma idade mais conflituosa, talvez porque é uma fase de afirmação, as expectativas são mais elevadas e a gestão das frustrações é mais complexa. Talvez não seja um acaso que, de Nick Drake a Kurt Cobain, passando por Ian Curtis, exista uma galeria infindável de suicidas nessas idades. Agora que já passou os 30, como é que olha para essa mitologia?

Só posso falar por mim, mas parece-me que as coisas são diferentes quando se está nos 20 ou nos 30. Quando olho para trás sinto que foi um trajecto difícil e quando olho para frente resigno-me, ou aceito, que não continuarei em ascensão infinita. Há uma altura em que pensamos que as coisas irão sempre melhorar, ser maiores, mas nem sempre é assim e há que saber lidar com isso. Há que aceitar que a vida não é um crescendo contínuo e que se morre e renasce – metaforicamente – muitas vezes. Algumas das experiências mais intensas que temos são como uma espécie de morte e digo-o sem nenhuma conotação negativa. Mais uma vez, ter filhos, dá-nos outra perspectiva sobre esse tipo de coisas. Descentramo-nos e percebemos que existem outras pessoas à volta, que atribuem outra feição à nossa existência. A lógica da vida – ir à escola, arranjar um emprego, enfim, esse tipo de coisas – não se transforma, mas deixamos de ser o único centro. E esse descentramento é bom. Talvez essas transições sejam mais fáceis para mim porque me habituei a elas.

Ser pai é uma grande transição. Instituiu um antes e um depois. Mas mudar de Nova Iorque para Lisboa, como fez, apesar de viajar muito pelo mundo, é também uma grande mudança. Teve consciência disso há dez anos?  

Vir para aqui teve qualquer coisa de renascimento, sem dúvida. Forçou-me a desenvolver uma outra auto-imagem, como se tivesse de recriar a minha identidade. Fui forçado a adaptar-me e a envergar uma roupa nova. Em muitos momentos da vida esses momentos de transição acontecem – depois de uma separação dolorosa, depois de se ter um filho, depois de alguém querido ter morrido –, alterando a nossa paisagem emocional e forçando-nos a uma restruturação enquanto indivíduos. Mudar para aqui foi uma grande mudança. Ainda não estou em condições de dizer que esse processo se completou, e que o círculo se fechou, mas é como se este álbum completasse uma trilogia do tempo que vivo aqui. O primeiro reflectia a excitação da novidade. O segundo espelhava o desaparecimento desse sentimento de novidade. E o terceiro é a aceitação, a apreciação e, de alguma forma, a reapropriação de uma série de coisas que fui descobrindo por aqui.

Nos últimos dez anos a própria cidade mudou muito. Numa das canções, Príncipe Real, discorre sobre o bairro do mesmo nome, que é uma dessas zonas de Lisboa em mutação.

É verdade e essa zona é um bom exemplo. A grande mudança deve-se ao turismo, com coisas boas e más. Por um lado significa receitas para a cidade, por outro também, de alguma maneira, a perda da sua alma. É um equilíbrio difícil. Mas os bairros de Lisboa são muito diferentes entre si, cada um com a sua personalidade vincada. Se quiser fugir do Chiado, por exemplo, consigo-o sem dificuldade, porque existem muitos outros bairros. Não sinto que a cidade se tenha desencontrado neste movimento, mas sem dúvida que se foi transfigurando.

Tem rituais muito precisos na cidade ou nem por isso?

Tenho uma vida normal. De manhã levo os miúdos à escola, volto a casa, vejo e-mails pela manhã e volto a eles depois de almoço, porque recebo uma nova remessa dos EUA por causa das diferenças horárias. Vejo também os resultados do basquetebol e vou a alguns sítios da Internet. E depois depende: tenho sempre um projecto a decorrer, uma remistura, ou uma canção, ou qualquer coisa desse género, e entrego-me a isso. Trabalho umas horas, volto à escola para buscar os miúdos, volto a ver e-mails e janto. Não sou grande coisa na cozinha, mas gosto de cozinhar. Depois ponho os miúdos na cama, relaxo com a minha mulher e vou para a cama…[risos].

Numa entrevista há uns anos disse que se sentia dividido em relação à experiência do palco. Podia ser prazenteira mas também angustiante. Imagino que, a solo, ainda poderá sê-lo mais do que no seio do seu grupo. Ainda vive as coisas assim?  

Na maior parte das vezes quando acabo um concerto o sentimento predominante é de alívio, mais do que qualquer outra coisa…[risos]. Pode ser prazenteiro, sim. Quando a música começa sinto prazer, mas é sempre uma batalha entre as condições existentes, algum medo e muita ansiedade. Andar em digressão resulta quase sempre numa atmosfera emocional complicada, com perturbação e pressão. Mas existem bons sentimentos, claro. E acima de tudo perpassa uma boa energia quando se está perante um grupo de pessoas que nos quer ver. Mas por norma fecho os olhos em palco, vejo sombras à minha frente, e rezo para que tudo corra bem, até ao alívio final.

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