Deus e os filhos numa manhã de domingo

O primeiro disco não-obscuro de MC Taylor (aka Hiss Golden Messenger) toma inspiração num romance de Eudora Welty – e é o seu álbum menos desgraçado.

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É preciso rastejar um pouco antes de aprendermos a andar em duas patas. Os caminhos de Deus – sabemo-lo pela décima primeira passagem do livro de Eclesiastes, que se segue aos Provérbios e antecede o magnífico Cântico dos Cânticos no Antigo Testamento – são tão misteriosos quanto os do vento. Assim também o cérebro dos humanos.

Em 1946, Eudora Welty, nascida no Sul dos Estados Unidos da América, editou o seu primeiro romance, Delta Wedding. Como a maior parte da obra desta extraordinária escritora, é um olhar impiedoso e empático sobre a família, as convenções sociais e a religião. No livro, que, como o título indica, revolve em torno de um casamento, há uma passagem em que uma personagem recorda, entre outras coisas, "the lateness of dancers". São apenas 23 caracteres, mas o suficiente para MC Taylor – que actuou recentemente no MusicBox, em Lisboa – criar aquele que é não só o mais recente como o mais ambicioso disco de um carreira elegantemente passada na mais injusta das obscuridades – e que tem por título Lateness Of Strangers.

O que raio terá acontecido na rede de sinapses de Taylor para aquela simples expressão inspirar um álbum? Abre-se a página do Spotify, faz-se uma busca por Hiss Golden Messenger, a banda que é um veículo para as criações de Taylor, escolhe-se Lateness Of Strangers, clica-se no play e eis-nos em pleno reino americana: as guitarras acústicas da folk, as slides da country, aqueles Hammonds saídos das igrejas do Sul. E torna-se de imediato cristalino que Taylor não pode se não ser um sulista religioso arreigado à tradição. <_o3a_p>

Sim e não. Numa canção antiga, Taylor canta que cresceu com bons pais, e que “isto” (o que quer que fosse “isto”) não é culpa deles. Pela descrição, certamente que lhes deve muito: “O meu pai é cantor e guitarrista, o meu irmão é um músico clássico. Desde pequeno que ouço os Byrds, os Buffalo Springfield, tudo por causa dos pais.” Mas o seu debute musical “foi numa banda de punk hardcore chamada Ex-Ignota”. <_o3a_p>

O bom filho à casa torna e a sua banda seguinte chamava-se Court & Spark, que é o título de um belo disco de Joni Mitchell. “Cresci a ouvi-la”, conta. Tal como com o projecto anterior, Taylor não vendeu nada que se visse. Na realidade, foram necessárias uma crise existencial e a decisão de desistir da música para que, paradoxalmente, encontrasse o êxito.<_o3a_p>

“Depois do insucesso dos Court & Spark eu pensei que o meu tempo como músico havia chegado ao fim. Emocionalmente, estava confuso: pensava que já não havia lugar para mim no mundo da música. Não estava necessariamente triste. Estava até a preparar-me para mudar de vida. Fisicamente, até: mudei-me da Califórnia para a Carolina do Norte. E talvez isso tenha tido importância, porque é um lugar muito rootsy."<_o3a_p>

O exílio tinha um objectivo: “Perceber o que era necessário e o que era contingente na minha vida." Lamentavelmente, Taylor “não encontr[ou] resposta”, mas chegou a uma conclusão: “É para resolver questões dessas que os discos servem." Pelo que em vez de abandonar a música desatou a criar novas canções “muito pessoais, muito íntimas”, em que discutia a sua relação com a fé, os seus demónios. <_o3a_p>

Taylor apreciou-as tanto que criou os Hiss Golden Messenger e lançou as primeiras gravações por uma editora obscura. “Não pensei que alguém fosse ouvir a música, era muito insular, era para mim e para os meus amigos”, diz. No entanto, não lhe escapa “a ironia: é que o lado pessoal da música é que trouxe pessoas a ouvi-la”. <_o3a_p>

Americana adentro

Sempre que um músico fala em espiritualidade, o sujeito que ouve apanha um susto e começa a pensar que vem aí conversa de karmas e afins. No caso ,Taylor é um homem bastante esclarecido, que discute longamente o que significa ser católico nos EUA. A religião organizada desagrada-lhe, claro, mas ele não consegue evitar pensar “se há algo no mundo que olha por [ele] ou se [está] completamente só”. O grande abalo foi o nascimento do primeiro filho: "Foi uma grande crise existencial. Parece um milagre, mas também é aterrador. Tenho de tomar conta de um ser tão pequeno que só me tem a mim. Espero mesmo que haja alguém lá em cima que olhe por nós e nos ajude."<_o3a_p>

No more shoot pool/ no getting drunk/ gonna see the kids/ oh God I need a help”: foi com este tipo de frases que as pessoas se identificaram. “Tenho muito trabalho a tentar perceber a Santíssima Trindade e tenho dificuldade em entender porque é que Cristo morreu pelos meus pecados”, começa Taylor no que virá a ser um longo solilóquio. “Por outro lado, quero acreditar que há um espírito maior que une as pessoas. O amor, para mim, é uma manifestação divina. A sensação de estar ligado a alguém de uma forma muito profunda, como com os filhos, é muito poderosa e inexplicável. Algo tão simples como um domingo de manhã, quando os miúdos entram cedo pelo quarto adentro, ou a sensação física de se abraçar um filho, isso para mim é uma manifestação de Deus. Tento ser um homem pacífico, mas em termos gerais sou um vagabundo existencial que só está a tentar perceber qual é a sua bússola. E parte disso passa pela fé."<_o3a_p>

Estas indagações povoaram os discos dos Hiss Golden Messenger e foram, lentamente, criando um culto em torno da banda. “A impressão que tenho é que com o Bad Dept [segundo álbum dos Hiss Golden Messenger] ganhei um pouco de atenção. Era só eu com a guitarra, a cantar coisas como 'I hated myself' e de algum modo aquilo tocou nas pessoas. Quando chegou o Poor Moon já tinha ouvintes, ainda que em número escasso, mas fiéis. Agora, o Haw foi o primeiro que vendeu alguma coisa que se visse."<_o3a_p>

As coisas parecem estar mais calmas, melhores, para Taylor: em Saturday's song, de Lateness Of Strangers, ele canta “When saturday comes/ I'm gonna lose control/ I might get a little crazy/ I'm gonna drink some whiskey” e por aí fora. Já não há culpa só por estar a jogar snooker e a beber umas cervejas, como nos discos antigos – antes uma brilhante viagem por todos os territórios possíveis e imaginários da americana, com uma banda completa a seu lado e um imenso prazer em fazer canções cheias à antiga.<_o3a_p>

Ah: Taylor diz que não se lembrava de que a expressão “the lateness of strangers” era de um livro de Eudora Welty (era só uma frase que apontara num caderninho) até um músico lho lembrar. Mas, se pensarmos bem, há demasiado em comum nos universos de Welty e de Taylor para ser simplesmente uma coincidência.<_o3a_p>

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