“Blockbusters” de Natal

Portugal foi um dos sítios no planeta onde o conceito de centro comercial conseguiu ser implementado com maior sucesso

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jayneandd/FLICKR

Chega a época natalícia e sai-se dos eixos. Por um lado, uma certa dormência invernosa, e, por outro, uma euforia consumista capaz de dar corda aos sapatos. Ivan Pavlov escreveu algo interessante sobre isto, pelo que remeto para esse autor detalhes acerca do fenómeno. Aqui o que me interessa é a ligação entre o contexto comercial desta quadra e a oferta de cinema.

Seja o leitor um bom amigo da mantinha numa tarde de Dezembro ou um shopaholic assumido (ou qualquer coisa intermediária), já reparou por certo que o período natalício é o melhor do ano para ir ver os filmaços da pipoca por que tanto esperou, as comédias mais divertidas para miúdos e graúdos, ou aquelas produções épicas e cheias de esteroides.

Esta época, hoje em dia, vai sensivelmente desde o início de Novembro até meados de Janeiro. As lojas começam a jogar as suas cartadas psicológicas cada vez mais cedo (vide Pavlov) e a maioria até já tem a desfaçatez de anunciar saldos no dia 26 de Dezembro, desvalorizando assim muitos dos presentes que acabaram de calhar no sapatinho. Mais ainda, estas são as semanas em que imensa gente volta às lojas para trocar as ofertas.

Portugal foi um dos sítios no planeta onde o conceito de centro comercial conseguiu ser implementado com maior sucesso. Microcosmos onde se pode ir por tudo e por nada, estes centros são locais compactos, climatizados, maneirinhos, despretensiosos, com estacionamento abundante e, geralmente, de fácil acesso. Como Portugal sempre precisou imenso da cultura de “plaza” ou de “piazza” mas nunca o assumiu, os centros comerciais substituíram os espaços públicos que não foram desenvolvidos em boa altura e aquelas requalificações do património que chegaram com décadas de atraso ao funeral.

As catedrais do consumo ofereceram-se como alternativas às tradicionais artérias das cidades, muitas delas hoje sobre-institucionalizadas, onde se sofre as intempéries no Inverno e as insolações no Verão e onde o preço da bica e da tosta dispararam rumo à estratosfera. Usufruir das redondezas e da arquitectura histórica é algo que, logicamente, deve ser tarifado como serviço premium. Quem disse que memória não tinha preço arrependeu-se no dia em que, devido à comodidade e aos preços mais baixos, se viu empurrado para a descaracterização da dolce vita! Quando as associações locais de comerciantes se aperceberam disto, já era tarde demais.

Quanto ao cinema, penso que já me fiz entender. Sim, é isso mesmo: não é só a leitora que adora o Natal, cinematograficamente falando; o Natal também a adora a si! Os centros comerciais são por excelência o lar das estruturas multiplex, geridas quase sempre pelas firmas hegemónicas de distribuição/exibição que detêm os direitos dos blockbusters. Como há mais pessoas nos centros comerciais por estes dias do que no resto do ano, joga-se tudo. Isto diz muito sobre o acto de ir ao cinema, da sua metamorfose no tempo e da relação entre cinefilia e espaço. Mas isso é outra história. Enfim, não há coincidências.

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