Psicanálise política

O espectador cinéfilo talvez não aprenda nada de muito novo a ver este filme, mas fica com algumas coisas para pensar.

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É conhecida a atenção que Slavoj Zizek, porventura o único “filósofo-entertainer” da actualidade, dedica ao cinema, variadas vezes objecto, ou pretexto, dos seus escritos e reflexões.

Este Guia de Ideologia do Depravado segue-se a outro “Guia”, também realizado por Sophie Fiennes e protagonizado por Zizek, feito há uns anos, O Guia de Cinema do Depravado. Esse filme, em vez de ser de facto um “guia de cinema”, era sobretudo um “guia” de psicanálise ilustrado a partir de dúzias de filmes e momentos da história do cinema razoavelmente célebres. Agora o modelo repete-se mas o enredo torna-se mais espesso: não se está somente com o cinema e a psicanálise, mas acrescenta-se um terceiro elemento, a “ideologia”. E o filme é, no seu essencial, uma dissertação, ou um conjunto de reflexões, sobre a estreita relação entre conceitos psicanalíticos e substractos ideológicos (quaisquer ideologias que sejam) ou, ainda, uma interpretação psicanalítica da relação com as ideologias políticas ilustrada a partir do cinema.

É sempre interessante e às vezes fascinante, como por exemplo logo na sequência inicial, quando Zizek se atira ao grande filme político americano dos últimos 30 anos, o Eles Vivem de John Carpenter, menos interessado no seu sentido político (aquela denúncia do capitalismo “yuppie”) do que naquilo que dele (os célebres “óculos escuros”) pode extrair para, como introdução, equiparar as ideologias às “lentes” através dos quais o mundo é apercebido por cada um. O exercício prossegue, depois, em capítulos tacitamente estruturados, abordando filmes tão diversos como A Música no Coração ou, num dos segmentos mais interessantes, uma aproximação ao Táxi Driver de Scorsese e à Desaparecida de Ford como ponto de partida para chegar (através do tema da “resgatada recalcitrante”) às intervenções militares americanas para colocar terceiros (o Iraque, por exemplo) no bom caminho da democracia. Essa ponte para a política “de facto” está sempre a ser feita, o que traz ao filme um bom número de excertos que, não vindo do cinema propriamente dito, são postos em articulação com ele (imagens dos motins de Londres de há uns anos, por exemplo). Os grandes “clássicos” da propaganda, seja nazi ou soviética, também são abordados, e é bastante curioso (aí há mesmo algum “didactismo” verdadeiramente cinematográfico) que Zizek vá buscar imagens de um dos mais delirantes filmes de propaganda jamais feitos, mas tão pouco conhecido, A Queda de Berlim, de Mikhail Tchiaureli, surreal “deificação” de Estaline. À boleia da verve de Zizek, a missão cumpre-se. O espectador cinéfilo talvez não aprenda nada de muito novo a ver este filme, mas fica com algumas coisas para pensar.

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